PORQUINHO-DA-ÍNDIA / O ESQUILO E A ABÓBORA / JOGO DE SOMBRAS
PORQUINHO-DA-ÍNDIA I (25 FEV 11)
Vejo a cobaia sobre as costas desse gato
e vejo o gato por debaixo da cobaia.
Não sei se o gato espera só que caia
para comê-la, pois, afinal, é um rato...
Ou se a cobaia tem confiança nesse fato:
que seja o gato de diferente laia,
que é bem alimentado e então não saia
para caçar, como o faz gato-do-mato...
Ou esta foto é só pose de um momento:
alguém está cuidando bem de perto,
antes que o gato faça o movimento
que a cobaia em refeição transformaria,
só esperando pelo instante certo
em que o fotógrafo descuidado ficaria...
PORQUINHO-DA-ÍNDIA II
Ou, ao contrário, a intenção é mesmo essa:
gravada a pose, sem mais subserviência,
o siamês põe um fim em sua paciência,
no instante que sua herança não esqueça.
Assim, os dois já pretendem pregar peça
nesse bichinho sem qualquer potência,
criado em cativeiro e na indolência,
sem perceber que o fado assim lhe meça
a derradeira hora, em um momento...
O gato espera, com a cabeça alçada:
findo o espetáculo, tem sua recompensa.
E a cobaia, sem qualquer pressentimento,
se firma na cabeça esperançada
por as presas lhe cravar na carne densa...
PORQUINHO-DA-ÍNDIA III
Ou talvez o gato esteja acostumado
com o ratinho branco, seu vizinho:
talvez joguem xadrez ou tomem vinho,
enquanto os donos da casa estão dormindo.
Ou, quem sabe, videogueime tem jogado,
movendo o joystick com o focinho...
Depois, seguem os dois para um cantinho
do sofá e a televisão vão assistindo...
Mas ao ouvirem que se movem as pessoas,
desligam bem depressa e até fingem
estar dormindo, cada um para o seu lado,
levando a vida perfeitamente às boas,
que em nada seus instintos os atingem,
sob esse teto tranquilo e sossegado...
PORQUINHO-DA-ÍNDIA IV
Pensando bem, me parecem bons amigos:
o siamês com a cobaia na cabeça
(que quando precisar, quem sabe peça
que as costas lhe coce, calmamente...)
Mas eu não sei realmente com que artigos
do código ou da fé a gente meça
uma tal camaradagem que professa
essa dupla tão estranha, realmente...
A cobaia bem tranquila sobre o gato
e o gato de cabeça levantada,
que até parecer dispor-se a ronronar...
Talvez porque de fato tem o rato
a sua tarefa bem determinada
e o companheiro não pare de coçar...
O ESQUILO E A ABÓBORA I (26 fev 11)
O esquilo cinza parado sob a neve,
em flocos finos como paina pura,
contempla o interior numa postura
curiosa e atenta como a vida é breve.
Acostumado com o inverno deve
bem certamente estar, mas sem fartura:
come essas nozes que no verão segura
e cruzar essa vidraça não se atreve.
E nem que se atrevesse, poderia...
O vidro é duplo para proteção:
são as "janelas para tempestade".
Quando chega o calor, se trocaria
por uma tela contra insetos de verão,
costume antigo nessa sociedade.
O ESQUILO E A ABÓBORA II
O esquilo cinza, por fora da vidraça,
está em pé, patinhas encostadas;
o peito é branco e as orelhas eriçadas,
dispostas a escutar o quanto passa.
Dentro da casa, é quase uma pirraça:
há uma abóbora de plástico e azuladas
pontas redondas, hastes imitadas,
mas o bichinho imagina como faça
para transpor esse vidro, que o separa
do que parece uma hortaliça suculenta...
Há um ursinho de pelúcia, bem ao lado,
que parece acenar, a mão sem garra,
indicando que da abóbora se alimenta,
deixando o esquilo ainda mais interessado...
O ESQUILO E A ABÓBORA III
E quanta gente assim para nas vitrinas,
contemplando a falsidade da beleza!
Roupas caras que não pode, com certeza,
adquirir, mas lhe parecem finas...
Ou recortadas mais para meninas,
sem servir para uma adulta em madureza...
Ou olha artigos de outra natureza,
como as viagens para variadas sinas...
Pois a barreira que existe é bem mais grossa
do que a janela que atrapalha o esquilo:
sendo transposta, desaponto lhe traria.
Mas cada um imagina como possa
satisfazer sua fantasia com tal brilho,
no transitório prazer que lhe daria...
O ESQUILO E A ABÓBORA IV
A vida é cheia destas fancarias,
dessa ânsia pelo lucro luminoso,
desse comércio de roubo consentido,
nas mil competições das fantasias,
pois, olhando vitrinas, te iludias,
em quimeras de um porvir mais delicioso
ou nebuloso prazer nunca sentido,
se adquirisses essas coisas que querias...
Mas, afinal, o que esperar de um sonho
apenas material, raso, bisonho,
como um sorvete que na mão escorre...?
E atrás do qual a gente tanto corre,
capaz do sacrifício mais fantástico,
para ganhar uma abóbora de plástico!
JOGO DE SOMBRAS I (27 fev 11)
O falcão me contempla de olho agudo,
bico aguçado, pescoço bem laranja,
sobre a cabeça uma castanha franja,
peito coberto por um branco escudo,
asas abertas, porte bem taludo,
buscando ver se alguma presa arranja,
nessa energia que ao voar esbanja,
cada remígio um dardo pontiagudo.
Bem sabe que não sou sua refeição,
mas posso ser inimigo em potencial
e assim me espeta com seu olhar fixo.
Talvez eu lhe ofereça proteção,
em sua memória a companhia natural
dos falconeiros em treinar prolixo.
JOGO DE SOMBRAS II
Mas nunca voará esse falcão:
é uma obra de arte transitória,
transfixada em seu todo a provisória
pintura feita durante uma sessão;
depois lavada, apagando a criação
dessa ave artificial e sem história.
Gravado assim o momento, curta glória
das pinceladas que na palma estão.
Como no jogo de sombras se fazia,
o artista trouxe à luz em cada mão
de seu modelo as asas em detalhe,
para depois registrar fotografia
e captar a passagem da ocasião,
antes que a vida seu destino atalhe.
JOGO DE SOMBRAS III
São tais mãos certamente femininas,
pela forma dos dedos, pela ausência
quase total de pelos, pela anuência
em se prestar às picadas pequeninas
desses pincéis; até mãos de meninas
poderiam ser pintadas com frequência,
mas a criança não teria igual paciência
e não são, certamente, masculinas...
Igualmente, o gavião que me observa,
asas veiadas desse cinza fino,
a avaliar qualquer chance de captura,
é como tal mulher, que amor conserva,
para do amado reger todo o destino,
nessa constante prisão de sua ternura.
JOGO DE SOMBRAS IV
O olhar atento parece de avelã,
no cão de caça voltado para a frente.
Sem dúvida, é uma obra diferente,
já ampliada para maior grã.
Essa figura transitória e vã,
em todos os detalhes consequente,
parece viva e de expressão potente,
os pelos finos como fios de lã.
É desta vez somente a mão esquerda,
a orelha delineada com cuidado,
para mostrar esse animal fiel.
Nas rugas dessa mão, cerda por cerda,
até na unha há um traço delicado,
contra um fundo degradado em tons de mel.