IMPOLUTO & MAIS
IMPOLUTO
Minha terra tem palmeiras onde canta a sanguessuga,
As aves que aqui gorjeiam, gorjeiam mais em Brasília:
A ambulância contratada só as estradas palmilha
Que conduzem ao livro-caixa que ao imposto dá a fuga.
É tanta cepeí a provar este governo,
É tanto escândalo! Parece que até a corrupção
Foi inventada agora, como se nunca ladrão
Tivesse residido na capital do inferno...
Não há razão, enfim, para este pobre Lula,
De rosto tão simpático, de dedo afantasmado,
Culpar pela malícia hostil dos conselheiros...
Buscaram para si o que a imprensa rotula,
Até que, um por um, fosse sendo afastado
E toda a culpa assumissem os nobres cavalheiros...
CURETAGEM
Eu sempre disse que esses meus sonetos
não eram meus de fato: sussurravam-nos
os deuses ao ouvido; ou cantavam-nos
os escravos que semeiam-me estes fetos
e os criam sadios, incólumes, completos,
esses versos adultos no cérebro reviram-nos,
tiram sangue dos ossos, metódicos, inspiram-nos,
para o consumo do mundo, esses botões diletos...
Talvez psicografasse; e as almas dos poetas
tomassem-me da mão e plácida a orientassem
no sentido das frases de vastidão completas.
Ou, quem sabe? Os arquivos no fundo consultassem,
tomassem cerebelo e bulbo até os axônios,
para abortar em versos meus neurônios...
JARDIM DO ESPANTO XX
A SETE-LÉGUAS
por que esses versos recobrem toda a gama,
do filosófico ao erótico, tantos temas,
tudo que abrange a expressão humana,
para que rimas toantes exponham gemas
de lapidar fulgor, até que apenas
resultem frases de expressão profana,
sentenças cálidas em vastas cantilenas,
sentenças frígidas que a exultação ufana,
por que se espalham, do amor vão à preguiça,
do assombro à calma, da frustração à fúria,
Fazem de odor amores e aos dedos não dão tréguas,
acumulando, assim, em produção maciça,
do auge da nobreza à insipidez espúria,
tão abrangentes quanto a Sete-Léguas...
SEPTICEMIA
Enrolo minhas entranhas ao pescoço e, no frio,
se tornam para mim perfeito cachecol;
meu fígado transformei em boné durante o estio,
meus rins pus em meus olhos, quais farol.
Agora é que preciso de ti: esse vazio
de uma forma qualquer vou preencher;
eu quero teu amor por dentro e me angustio
do diafragma abaixo, cansado, por não ter.
Num alguidar de sonho, feroz, que me embolia,
esse meu pranto seco, ao negror do meio-dia,
essa medula sólida, de gravidez fluída.
Meu cóccix quebrado, em vértebra partida,
por esse amor estranho, amor de bactéria,
que me infecciona a alma, em bênção deletéria.
SOLIDÃO
Eu vou perdê-la, no romper da aurora,
pois deu-me o corpo e nunca o coração.
Os costumes mudaram, é fácil a paixão,
da noite apenas, na supérflua hora.
Essas mulheres recusam dependência,
querem viver sexual e sem amor.
Mostrar o corpo, sem a alma expor:
e tudo eu olho, presa ainda da inocência.
E assim eu vejo, qual se lera um glíptico,
tantas mulheres que não têm mais filhos...
Trata-se, apenas, da Grande Apostasia,
nessa recusa de cunho apocalíptico.
Em que partem as cercas e cortam os atilhos
para vencer em disputa assim vazia...
AS JOVENS DE ROMA XXIV
AEMILIA
PREFIRO, QUANDO A BEIJO, SEJA VINHO
QUE RECENDAM SEUS LÁBIOS: CARMESIM
ESSE RESSAIBO AZEDO E DOCE; E ASSIM,
EU A CONDUZO A MEUS LENÇÓIS DE LINHO...
MAS TANTAS VEZES O GOSTO É DE CIGARRO,
DE AMARGURA E MÁGOA REDOLENTE,
QUE ME MORDO POR DENTRO, DE IMPOTENTE,
ANTE O FREQÜENTE OUVIR DE SEU PIGARRO...
APENAS ELA EU BEIJO, NÃO QUALQUER,
E ME CONTROLO, ENFIM, QUANDO EU ASSUMO,
A CONTRAGOSTO, A NUVEM DE SEU FUMO...
É PURA NOS SEUS VÍCIOS, TAL MULHER;
E SÓ POSSO AGRADECER, QUANDO ME BEIJA,
ENTONTECIDA, COM LÁBIOS DE CERVEJA...
JARDIM DO ESPANTO XXI
A JACOBINA
Depois de tantos anos de silêncio,
Recomecei a escrever a partitura
De melodia de expressão bem pura,
Que já criara ao piano há vários meses...
Porém meu adiamento logo vence-o...
Perdi a prática, meus dedos estão duros,
Colcheias saem tortas, são escuros
Os borrões que se me escapam; japoneses
Terei de contratar para o restauro
Da pobre pauta sempre corrigida;
Antes de dar, a quem ela se destina,
Esta canção em que o olhar exauro,
Num acalanto da alma adormecida,
Fiel e humilde, tal como a jacobina...
AS JOVENS DE ROMA XXV
VESPASIANA
O QUE EU SINTO É QUE TIRARAM MEU BRINQUEDO;
OUTROS GANHEI, DEPRESSA... ESTOU JOGANDO
AINDA ESSA PARTIDA, NÃO ESTOU QUEDO
PELO PASMO E SOLIDÃO DESSE DEGREDO...
GOSTAVA TANTO DE TROCAR IDÉIAS
COM QUEM ME INCENTIVOU, POR UM MOMENTO...
CONVERSAS LONGAS, ENEIDAS, ODISSÉIAS,
PROMESSAS VAGAS, COMPROMISSO ISENTO...
HOJE ME VEJO, DE NOVO, INTERPRETANDO
MEUS SENTIMENTOS, PERANTE UMA PLATÉIA
SEMPRE CRESCENTE, QUE TANTAS PALMAS BATE;
MAS SÓ QUISERA UM ROSTO OBSERVANDO,
UM PAR DE MÃOS APENAS, NESSA ESTRÉIA,
DOS POBRES VERSOS QUE ESCREVEU TEU VATE...
ESPÚRIO [para Berenice]
Pois bem, Onde encontrar
É rara, A fonte esquiva,
Não tem, A mãe furtiva
É clara. De tantos versos...?
Lá está, É como um câncer,
É solta, Cresce sem laços,
Não dá, Nesses abraços,
Revolta. De tons diversos...
É assim, Que te revela, então,
Porém, Na estranha exultação,
Enfim. De uma displasia;
Ferido, Onde se acha, assim,
Também, Esse fulgor de mim,
Contido. Senão na neoplasia?...
JARDIM DO ESPANTO XXII
A BOUGAINVILLEA [BUGANVÍLIA]
Nunca entendi qualquer fosse a razão
de negar-me suas flores esta bela,
como se nunca, na amplidão singela,
mostrado houvesse a alguém o seu botão.
Porém eu sei que o esplendor vermelho
dessa nua flor, vibrante de três pétalas,
por muitos fora visto, que suas sépalas
em brácteas se tornavam, nesse velho
costume que conserva a trepadeira
de querer sempre mais experimentar.
Para dar flores, tivemos que a podar...
Também eu vi podada a maravilha,
antes de ver transformada a vida inteira
no esplendor que me ostenta a buganvília!...
BOLETIM [para Mário Régis]
Havia antigamente um jornaleco
de missionários, cujo português
era bem pobre; e não fazia eco
às construções que nossa língua fez...
Ensinar a falar bem pretendia,
mas vinha mal, já desde o cabeçalho:
"Ajudas com a Língua" -- ele dizia,
tal qual macaco que trocou de galho...
E desse modo, mais atrapalhava
os pobres rapazinhos das aldeias
do que bem lhes trazia, na ilusão
de que mau português os ajudava,
em arrevezadas pregações tão feias,
a conquistar do povo o coração...
METROS GREGOS XVI
SONETO ANACRÚSICO
Finalmente percebi, depois de tantos meses,
esperando alcançar um meigo e manso amor,
desejando só ela... que todo o meu ardor
desertos se tornara em múltiplos talvezes.
Porque não desejava, enfim, ser satisfeito;
era tão só a busca de uma intimação:
de um túrgido esplendor; tão só motivação
para forçar inútil a arte de meu peito...
Pois assim impugnava, em petição, direito:
nivelava em minhalma um tal ideal desfeito,
conseguia fingir para mim mesmo um tal
emotivo fulgor -- que mil versos jorrasse,
de um vigor, afinal, que a mim mesmo espantasse,
por saber que esse amor era apenas imortal.
No soneto anacrúsico, as duas sílabas iniciais são breves (átonas) e o verso só é considerado para fins de métrica a partir da ársis, que é a terceira sílaba e a primeira sílaba longa (tônica).