GLOBOS HERMÉTICOS I-XII

GLOBOS HERMÉTICOS I

Eu sou assim: a vida me comove

desde o útero da mãe, enquanto dura;

não que me iluda que a criança seja pura,

mas que o futuro da raça nos comprove.

Já a morte mais me deixa indiferente:

é a energia da raça que se envola;

uma criança que aprende mais me assola

que ver a morte obrando tão frequente.

Talvez seja que a morte a todos vem,

em sua empolgação definitiva:

é monótono o clamor da sepultura.

Mas a vida traz mil chances e contém

a glória e a ilusão da mais altiva

canção das mágoas na consciência pura.

GLOBOS HERMÉTICOS II

Um dia, eu te acharei, no tempo mais vazio,

os meses serão nuvem e amor, estrela,

quando o Universo reduzir-se a estela,

num obelisco plantado em pleno estio.

Um dia, eu te acharei, envolta em cio,

fertilidade dourada de organela,

tranquilidade impura de procela,

vergonha intensa no mais austero brio.

Um dia, eu te acharei, envolta em horas,

os anos a teus pés, botas e meias

dos séculos... a servir-te refeição.

E cravarei nos astros minhas esporas,

ao ver desguarnecidas as ameias

e morrerei em ti, numa explosão...

GLOBOS HERMÉTICOS III

Quando as coisas acabam, surgem fatos

que deveriam ser primeiros a acabar,

mas não o são e se voltam a mostrar,

na zombaria vã de tais boatos...

Quando as coisas acabam, surgem jatos

de desalentos, firmes a jorrar,

que as coisas não se podem encerrar

tão simplesmente quanto dons baratos.

Há tanta coisa que insiste em não morrer!

que vêm à tona, o esforço da conquista,

marchas e contramarchas da batalha.

No desperdício final do transcorrer,

tantas etapas perdidas pela pista

dessa vitória... que finalmente, falha...

GLOBOS HERMÉTICOS IV

Um dia, ela virá: a explosão

que o sistema inteiro, num momento

consumirá, no mais casual portento,

sem deixar margem de renovação.

Um dia, ela virá: a implosão

que meu cérebro inteiro e pensamento

consumirá, levando o sentimento

que ainda pudesse restar no coração.

Para mim, particular será esse dia,

sem que a menor importância venha a ter

para os demais, cuja vida persistia.

E é até possível que a Terra bem vazia

se encontre há séculos quando o Sol morrer,

tornando o mundo em caliça fugidia...

GLOBOS HERMÉTICOS V

Se o tempo é apenas a quarta dimensão,

nele fluímos, igual que pelo espaço.

e retornar é possível ao pedaço

que ficou para trás, na imensidão...

Também será possível retração

para a direita ou esquerda nesse abraço:

ver as coisas que não foram e até um laço

jogar para o futuro, em transição...

E, sem que envelheçamos no caminho,

mover-nos pelo tempo, igual que dantes

nos movíamos no espaço, em busca vã...

Ou guardarmos tão só um quadradinho...

Que seja assim: o mapa de meu antes,

emoldurado pelo esquema do amanhã...

GLOBOS HERMÉTICOS VI

Se pelo Tempo mover-se for possível,

do mesmo modo que se mexe pelo espaço,

bem depressa se buscaria um pedaço

delimitar e torná-lo intransponível...

Tal como a Terra é cortada, na visível

ambição pela posse de seu traço,

o Tempo, na abrangência de um abraço,

seria tolhido, não mais inexaurível...

E por quais leis seria permitido

trechos de tempo comprar e então vender,

qual latifúndio de grandes proprietários...?

E que tempo restaria ao excluído

para o mais simples ato de viver,

se o tivesse de alugar aos milionários...?

GLOBOS HERMÉTICOS VII

Depois de explorada a terra toda,

restam os mares, em sua profundeza

e os céus, em sua distância de nobreza,

que atraem os homens em fantasia e moda.

É assim que se consuma a antiga boda

entre a terra e o mar ou a beleza

que mar e céu compartilham, com certeza,

num casamento a três, eterna roda.

E tão profundo é o mar, em seu ocaso,

quão distante o firmamento, no seu véu,

que intriga o homem desde a mocidade,

sem notar que o mar é bem mais raso

que qualquer alma humana, enquanto o céu

mais perto se acha que a felicidade...

GLOBOS HERMÉTICOS VIII

Deus se encontra em reunião com as potestades,

dominações e tronos. Qualquer destino assim

da prece ao paraíso, um serafim

ou um arcanjo mesmo, sem maldades,

irá fazer triagem. Será por tais vontades

que o acesso ao Criador talvez, por fim,

será retransmitido. Quem sabe, um querubim

ou um anjo te engavete as veleidades...

Porque afinal, esses múltiplos pedidos,

desconhecida a causa ou a consequência,

talvez produzam estranhos resultados...

Sabe-se lá, se ao sermos atendidos,

estaremos a ganhar benemerência

ou um mal maior que nos deixe atribulados...?

GLOBOS HERMÉTICOS IX

A música é essencial para minha vida:

passo o dia a escutá-la, bem variada,

do folclore ao clássico, marcada

por dodecafonia ou por antiga

escala pentatônica; e dou também guarida

ao jazz e ao soul e ao rock nessa estada:

que Bob Marley eu ouça, intercalada

sua música e a de Haydn, mais amiga.

O que não posso é ficar sem escutá-la.

Se isso me acontece, já enfraqueço:

é minha razão de desvelo e de energia.

Não sei dos outros, a cada um sua escala

ou seu registro, não sou eu que meço:

mas para mim é a fonte da alegria.

GLOBOS HERMÉTICOS X

Ao viajarmos, parece-nos que os dias

aguardam pela frente, enquanto as horas

transitórias, que as rodas das demoras

devoram, se apresentam mais vazias.

Melhor seria que somente as fugidias

milhas de espaço assim saíssem fora

de nossas vidas, uma a uma, embora

o tempo estagnasse em miasmarias...

Enquanto o dia nos aguarda pela frente,

cheio de eventos, bons ou maus agouros,

inesperados, tormentos e benesses,

vemos que o tempo viajado é indiferente:

se escoa apenas, honras e desdouros

tão inúteis quanto lágrimas e preces...

GLOBOS HERMÉTICOS XI

Eu vi a chuva torrenciando a noite,

até que eu mesmo despertei a aurora;

com que frequência assisto, nesta hora,

ao exílio da Lua, em frio açoite...

Vejo a noite arrombada e sem acoite,

fugindo para o véu do meu outrora;

o som se impõe feroz no meu agora

e refugio-me no leito, em meu afoite...

É nessas poucas horas, fim da treva,

começo da alvorada, que os pardais

pipilam, hipnóticos, meu sono...

Mas é o arrulho das pombas que me leva

a dormir mais um tempo, sem jamais

conformar-me em perder da vida o trono.

GLOBOS HERMÉTICOS XII

Um dia, me disseste que esperaste

por mim em vão, embora fosse errado

o ponto de tua espera; e contemplado

eu tivesse o lugar em que não chegaste.

Aborrecida, depois, tu me falaste

que nunca mais igual desconsolado

momento passarias, em desolado

aguardar solitário a quem buscaste...

Que não farias nunca mais. Homem algum

poderia justificar a humilhação

de ser olhada por tantos, de passagem,

sem querer ver os olhos de nenhum,

vendo esvair-se assim toda a coragem,

até esvaziar-se o próprio coração...

GLOBOS HERMÉTICOS XIII

No mundo existe gente bem maléfica:

busca lucrar a troco de ciúmes,

sente prazer à vista de azedumes,

na mais estranha e invertida estética;

gente que segue a mais incerta ética:

que se dedica a apagar todos os lumes

e espalha a seu redor, como cardumes,

boatos mil de inspiração morfética,

nas mil insinuações em que se enseja

a falsa reticência, com que engodem

à depressão, em espasmos de incerteza,

na ausência de outro bem, comem inveja

e buscam destruir o que não podem

compartilhar, em espectral torpeza...

GLOBOS HERMÉTICOS XIV

Além da clara treva de tua vida

se encontra a luz escura do destino:

desfiladeiro de angústia, amargo e fino,

que hás de cruzar, em falsa despedida.

Houve um nenê, do ventre em sã guarida,

que perguntou ao gêmeo, em desatino,

"Há vida além do parto?" Pequenino

é o morno abrigo em que se acha contida

a vivência conjunta deles dois...

Quando crescerem, não caberão jamais.

E assim a mente ao mundo se agiganta.

Quando crescer, não caberá depois

no próprio cérebro. Será grande demais

e a novo mundo é então que se transplanta.

GLOBOS HERMÉTICOS XV

Sempre cri na vida eterna. Mas não sei

se realmente existe. Se o soubesse,

deixaria de crer na longa prece:

no que já sei que existe, não crerei...

Eu sei que existe o Sol e que o verei

a cada dia que o clima não nublasse,

quando o fulgor a névoa assim filtrasse.

E que outra noite me venha, esperarei.

Mas eu não creio no Sol. Não tenho fé

que o astro exista, porque sei que está

pairando sobre mim e que seu brilho

sempre alumia do meu passo o pé.

porém não sei se a vida eterna existírá,

por isso eu creio seguir por esse trilho.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 09/04/2011
Código do texto: T2897860
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