VERA HAMADRÍADE I-VI & MARANDUVÁS I-VI

VERA HAMADRÍADE I (19 fev 11)

Existe outra bem mais natural

erguida hoje em algum lugar da Europa;

o tronco é branco, mas é verde a copa,

porque viceja em vida vegetal.

Não recebeu um corte assim fatal,

que a natureza dessa tortura a poupa;

qualquer um a reconhece assim que topa,

qual dançarina em salto triunfal.

Estende os braços e ramifica os dedos

em variedade de ramos e raminhos

e sua cabeça se lança para trás,

talvez a sussurrar os seus segredos,

quiçá a sugerir até carinhos,

orgulhosa dessa pose que assim faz....

VERA HAMADRÍADE II

Ninguém tocou no tronco desta planta;

como hamadríade cresceu naturalmente.

Um espírito gentil se fez presente

e congelou-se em posição que encanta.

A pele é rosa e branca sob a manta

da canópia que repele o sol ardente,

verdor brilhante de vigor potente,

enquanto ao espaço soergue sua garganta.

Lança uma perna para trás em fino

e majestoso salto para o ar,

nesse balé ritual da despedida...

Sabe-se lá por que favor divino

foi transformada assim para durar

muito mais tempo do que a humana vida!

VERA HAMADRÍADE III

Ou quem sabe, essa ninfa se matasse

por força de um amor mal recebido,

que não fora por alguém correspondido

e não pudesse suportar que a desprezasse...

E assim, nessa clareira, derramasse

todo esse amor que havia concebido...

E a tal visão, um deus, compadecido,

nessa árvore virente a transformasse...

E que o vermelho sangue da donzela

em seiva branca assim se condensasse

e desse vida e forma ao seu verdor...

E o amor fervente que brotara nela

em galhos congelado rebrotasse,

como a prova final de seu amor...

VERA HAMADRÍADE IV

Talvez, à noite, quem chega na clareira

a possa ver dançando à luz do luar...

Ou, em noites mais escuras, rebrilhar,

num rodopio de luz alvissareira...

Quem sabe em salto imóvel, derradeira

demonstração da energia de valsar,

por sua hubris quis o deus a castigar

e, em vulto branco, petrificou-a inteira.

Mas eu sinto, ao contemplar sua harmonia,

um não-sei-quê que a mente me comove

e até queria de seu baile partilhar...

Talvez eu tire de uma lira a melodia

que esse tronco estremece... E assim renove

seu espírito cativo, em cintilar...

VERA HAMADRÍADE V

Mas o que ocorreria se eu, então,

fosse tocar, igual que Orfeu, a lira?

Os espíritos da noite agitaria

e escutariam minha encantação?

Despertaria Eurídice a emoção

que ao longo dessas cordas tangeria...?

E se esse olhar que sob a casca mira

se preenchesse de lágrima e paixão?

Não obstante, se nem o próprio Orfeu

trouxe Eurídice, afinal, à luz do dia,

como a hamadríade eu despertaria?

Por mais forte este amor que fosse meu,

dos caprichos de um deus dependeria,

muito mais do que minha lira desprendeu...

VERA HAMADRÍADE VI

Vamos supor, então, que um deus travesso,

buliçoso, a zombar do romantismo,

se dispusesse a executar um cataclismo,

para atender a essa graça que lhe peço...

Em meu corpo, de repente, já eu cresço,

a terra foge, qual para um abismo,

pois nem entendo qual tipo de exorcismo

causou a mutação que já nem meço!...

Ela me olha, com pupilas reluzentes

e meus braços entrelaçam seus cabelos,

mas não foi nova vida que lhe dei...

Meus dedos se alongaram, mais potentes,

e reconheço, à luz dos pesadelos,

que noutra árvore igual me transformei!...

MARANDUVÁS I (2009)

São estranhos artifícios que minha musa

emprega em me manter comprometido.

Parar de rascunhar já decidido,

eu tinha, ao ver a ruma tão profusa,

que se alça mais e mais, nessa difusa

maravalha de tintas, em verbo puído,

capaz de transmitir sonho ferido

e resistir ainda mais que ferro gusa...

Desistir pretendia ou, pelo menos,

até passar a limpo essa muralha

que vejo erguer-se ao lado, inexpugnável,

em suas ameias de doçuras e venenos...

Mas a musa fez-se ouvir, numa mortalha

de sonho totalmente indeclinável...

MARANDUVÁS II (2/3/2011)

A musa enviou-me essas lagartas

para roer retalhos da mortalha

que me reveste a alma e que se espalha

por velhos naipes de esquecidas cartas.

Enchendo os ventres até ficarem fartas,

a alma deixaram assim com grande falha,

na árvore da mente, que se esgalha,

com as folhas corroídas pelas dartas.

Melhor maranduvás abrindo espaço,

que pelo menos areja-me o interior,

do que ceder à impingem e ao mosaico,

pintalgando de manchas todo o traço

que a alma reveste em pálido exterior,

mumificada em seu amor arcaico...

MARANDUVÁS III

Contudo, o rascunhar eu pretendia

interromper, mas a musa não deixou!...

Passei a limpo e mais me provocou

a incrementar a ruma que crescia.

Tirei da alma as lagartas que lá havia

e as coloquei na pilha que restou.

Mas cada inseto esse alimento rejeitou,

pois diferente alimento preferia.

Se elas desejam tornar-se borboletas,

banquete vivo precisam, natural...

Quando na ausência de matéria vegetal,

procuram folhas um pouco mais secretas,

como essas tiras que envolvem a minha alma,

para que as possam devorar em plena calma.

MARANDUVÁS IV

Essas não são as larvas do comum,

que servem de festim a passarinhos.

Não eclodem mariposas desses ninhos,

formados por casulos, um a um...

Quem gostaria de um lugar nenhum,

como são intangíveis os arminhos

que me acolchoam a alma em seus carinhos,

senão seres formados de simum...?

São criaturas de areia as borboletas

que me devoram as faixas restringentes,

numa fúria que parece de neurose...

E quando saem dos novelos, lentas setas,

voltadas para os ares candescentes,

será em versos a sua metamorfose...

MARANDUVÁS V

Não esses versos que guardo em mil rascunhos.

Serão mais leves, de outra natureza,

com as asas multicores, com certeza,

e não os versos calcados por meus punhos...

Quando se abrem os casulos, testemunhos

darão dos sentimentos de pureza,

darão dos pensamentos de nobreza,

que revelam de minha alma os brandos cunhos.

Terão asas de ouro os lepidópteros,

meus poemas proclamando pelo espaço,

de forma tal que eu nunca fui capaz...

Pois meus escritos são mais os coleópteros:

têm élitros sedosos os que faço,

mas não te seguem aonde quer que vás...

MARANDUVÁS VI

São poemas mais pesados, certamente,

que esses que na mente concebera

e que, ocasionalmente, já escrevera:

vagalumes silvando em luz candente.

Eles se prendem à terra redolente,

resultados imperfeitos de uma mera

busca de luz de qualquer vela de cera,

que queimará suas asas, inclemente.

Meus poemas são os ovos dessas traças

que só vêm para furar originais:

amam palavras, em refeições secretas...

Enquanto os verdadeiros têm as graças

que nunca eu alcancei, porque jamais

consegui dar à luz as borboletas!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 30/03/2011
Código do texto: T2878738
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