DEJANIRA I & MAIS

DEJANIRA -- COROA DE SONETOS

DEJANIRA I

Oh, Zeus, meu pai, por que tanto me provaste?

Sei que me deste a força, porém invulnerável

Eu nunca fui, embora inquebrantável

Consciência do dever tu me inspiraste.

Meus filhos não matei, somente os versos

Neguei-me a redigir durante tantos anos;

Agora chega a hora de doze desenganos

Transformar em poemas de acidez conversos.

Em gotas de matiz sonoro e adocicado,

Beleza por tortura, razão por desatino,

Coragem por perigo, sabor por azedume,

Mais que Herakles eu sofro, de tão atribulado,

Porque a história já li e sei que é meu destino

Morrer incinerado no manto do ciúme.

DEJANIRA II -- O JAVALI DE ERIMANTO

Oh, Zeus, meu pai, por que tanto me provaste?

Foi Hera, tua mulher, que me levou à loucura

E fez-me cego e surdo: em meio da tontura,

Matei meus próprios filhos e então me condenaste

A Doze Obras Terríveis, escravo dos humanos...

Primeiro um Javali, que foi capturado

Nas faldas do Erimanto, em fosso aprofundado

Passei-lhe a focinheira; seus saltos quase insanos

Interrompi com cordas; levei-o aprisionado

Para o Rei Euristeu, que não soube retê-lo

E deixou que fugisse, e dano incalculável

Causasse na cidade, até que fui chamado

Para matá-lo a flechas; e agora, em meu desvelo,

Sei que me deste a força, porém invulnerável!...

TORQUE

Eu sou a voz passiva do soneto,

A te tocar, ativa, o coração,

Por despertar-te nalma uma emoção

Adormecida e de esplendor discreto.

O que não quero é ver-te indiferente,

Que não sejas passiva ao contemplar-me:

Quero mexer contigo, dar o alarme

Que te fará segura e competente.

Tais versos não são meus: a ti pertencem;

Se, como câncer, por dentro me corroem,

É que me sinto exposto na mensagem

Que tenho a transmitir: eles me vencem

E assim minha carne e músculos destroem

Só por tornar-te ativa em tua coragem.

PERCEPÇÃO

Somos centro do mundo, cada um,

Cada um de nós vê só pelos seus olhos,

Seus olhos tudo medem, são escolhos

Escolhos para o raro -- e do comum.

E do comum, recriam para si,

Para si tendo mensurado tudo,

Tudo que nos rodeia, sobretudo,

Sobretudo o que parece amor em si.

Amor em si que temos por nós mesmos,

Mas que os outros mantêm para si mesmos,

É a mais antiga ilusão que nos reclama.

Porque caímos todos no mundéu

Que nos armam os deuses, desde o céu,

Quando nos fazem crer que alguém nos ama.

PSICOFAGIA

Pensei um dia conquistar tua alma

[Sem mais pensar], logo entreguei a minha,

Azul e floralmente, em comezinha,

Bancária transação, tranqüila e calma,

Que pela tua seria substituída,

Alma por alma, miséria por riqueza,

Tristeza por confiança, vagrança por certeza,

Beleza a replantar na alma dolorida.

Mas como essa tua alma é facetada!

Nunca me deste sequer um fragmento,

Por todo o meu esforço, por tudo que sonhei,

Mesmo que se tivesse mostrado devastada,

Tal alma foi egoísta, tragou-me de alimento,

Sem nada retribuir por tudo que lhe dei.

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O progresso deveria, com freqüência,

facilitar minha vida e resolver

os meus problemas e não me conceder

um sentimento vago de impotência,

quanto me causa e dá aborrecimento

o que útil deve ser, quando trabalho,

quanta espera impaciente, em que me espalho

na ilusão incolor do embaçamento.

É, em vez de me agradar, serva teimosa,

não me deixa tranqüilo um só instante,

passa empacando e atenção reclama

máquina esta, que enfim, é pretenciosa:

que insiste em se mostrar tão importante,

mas não passa de garota de programa.

RAZÕES

Apenas um gênio tais versos teria

De ardor e despeito e fragrância de encanto,

Com tanta freqüência e brutal agonia,

Composto casual em total desencanto...

Apenas um gênio, tais versos de geada,

Cabelos grisalhos, visões de harmonia,

Suspiros de carne, desgostos de fada,

Retalhos de trevas cantar saberia...

Apenas um gênio, ou antes, quem sabe?

Algum que já sofre tão mais que os demais,

Que o próprio sofrer não se abranda jamais...

E apenas nos versos sua pena se acabe,

Apenas nos versos de ardor e de encanto

Que escreve quem ama e recama de pranto...

MAGMA

Revesti-me de amores, lentamente,

Em melopéia rubra de guirlandas,

Grinaldas puras de emoções mais brandas,

Quanto o desejo explode mais freqüente...

Sendo assim meus amores mais quimeras,

Aprendi a conter-me em meus orgasmos,

Para servir mansamente seus espasmos

Num perdurar de lavas em crateras...

Que se acumulam rubras, trovejantes,

Respiram cinzas, gases sulfurantes

Em piroplástica e férvida explosão...

Sopitando os anseios, sufocados,

Até não mais contê-los, extasiados,

Para explodirem em cálida emoção!...

ESCARAMUÇA

Pois quantas vezes a mente me perpassa

Um movimento de fugaz ternura,

Um regravar sutil de canelura,

Que nas colunas tuas se entrelaça...

Passamos pelos outros sem vestígio,

Toque de leve, sopro que deflora [as]

Ninfas da mente, quase nunca aflora

De nosso orgulho o singular prestígio...

Pois quantas vezes o assomo de vaidade

Capitaneia audaz nosso batel

E nos restaura a própria virgindade

De nossa vida toda; o capitel

É um egoísmo voraz, sem saciedade,

Que nunca pede e nem dará quartel!...

DEJANIRA III -- O LEÃO DA NEMÉIA

Sei que me deste a força, porém invulnerável

É o leão que assola as plagas da Neméia;

Ordena a Pallas que me inspire a idéia

Para vencer tal fera inigualável...

E assim a deusa veio dar ao herói

A inspiração para a tremenda luta;

As flechas se entortaram na disputa,

Rompeu-se a clava e o monstro não destrói.

Foi necessário montar sobre o leão:

Não pude sufocá-lo, mas a espinha

Enfim partiu-se, não era comparável

À pele inconquistável, que revestiu-me então.

Porque invulnerável, na luta que foi minha,

Eu nunca fui, embora inquebrantável.

BÁSCULA

ME PONHO EM TEU LUGAR,

DEIXAR-SE PENETRAR

POR UM OUTRO QUALQUER É TRÁGICO DESTINO.

AMAR É POR AMOR,

AMAR SÓ POR CALOR,

NADA MAIS É QUE PURO DESATINO.

AMOR AMA OUTRO AMOR,

AMAR SEM TER AMOR

SÓ SATISFAZ DESEJO PEQUENINO.

AMOR CURA OUTRO AMOR,

MAS SEXO SEM AMOR

NÃO TE FAZ ESQUECER O SONHO PEREGRINO,

DE VIVER A EMOÇÃO

DE TER NO CORAÇÃO

UMA PAIXÃO QUE FOI AVASSALADORA.

MAIOR QUE TENHA SIDO

O PESAR DE TER SOFRIDO

O ULTRAJE, HUMILHAÇÃO E DOR DEVASTADORA,

UM CORPO NÃO SERÁ,

UM CORPO NÃO DARÁ

CONSOLAÇÃO POR GOLPE TÃO TERRÍVEL.

NÃO ADIANTA BUSCAR,

NÃO ADIANTA ENTREGAR

TEU CORPO APENAS A UM MERO SUCEDÂNEO.

TERÁ TERRÍVEL CUSTO,

ALÉM DE SER INJUSTO

ENTREGAR-SE A UM ARDOR CONTEMPORÂNEO.

AGORA TE ENCHERÁ,

TUA DOR APAGARÁ

APENAS NOVO AMOR INEXAURÍVEL.

DEJANIRA IV -- AS ÉGUAS DE DIOMEDES

Eu nunca fui, embora inquebrantável

Vontade de vencer me tenha acompanhado,

Aonde quer que fui, guerreiro abandonado:

Minerva me ajudou de forma imponderável.

Foi assim que enfrentei as éguas de Diomedes,

Lampônia e Ianto, Deno e enfim, Podargo,

Pelo rei acostumadas a um amargo

Festim de alfafa e carne, em que percebes

O alcance doido da humana perversão.

Joguei-lhe Diomedes, por repasto,

Levei-as a Euristeu, como mandaste,

E se tornaram dos lobos refeição.

Sabes bem a razão do esforço gasto:

Consciência do dever tu me inspiraste.

DEJANIRA V - OS BOIS DE GERIÃO.

Consciência do dever tu me inspiraste,

Por isso fui a Erítia, onde Gerião,

Seis braços, três cabeças, se reveste

De sólida couraça até o chão.

Matei ali primeiro seu pastor,

Eurítion, também de duas cabeças;

Frechei os sete olhos de um horror:

Destruí um dragão e quanto mais me peças.

E quando Gerião, coberto de armadura,

Lançou-se contra mim, seus joelhos descobertos

Foram meu alvo; e dei-lhe sepultura,

Após fender-lhe os crânios, os dispersos

Rebanhos eu levei; Senhor, de olhos abertos,

Meus filhos não matei: somente os versos!

DEJANIRA VI -- OS ESTÁBULOS DE ÁUGIAS

Meus filhos não matei, somente os versos

Cantaram sobre mim a explanação

De porque, em trabalhos tão diversos,

Minhas forças desgastei, sem negação.

Foi assim que limpei as cavalariças

Do Rei Áugias, pois desviei dois rios,

O Alfeu e o Peneu: águas mortiças

Correram por semanas, até que os fios

De água cristalina rebrotaram.

De modo semelhante, os perversos

Sentimentos da alma, os desenganos

Se foram empilhando e armazenaram

Tristeza e mágoa, pois que tantos versos

Neguei-me a redigir por tantos anos...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 28/03/2011
Código do texto: T2874689
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