FERRARIA 1-12

FERRARIA I

Quando o ferreiro tempera o seu metal,

martela com o malho, muitas vezes

até que se enrijeça; em seus arneses

o prende com tenazes... Tão real

é o calor, que até o aço se avermelha

e então se torna duro e quebradiço:

tem de ser resfriado e novo viço

ele adquire, maleável para a grelha.

Esse é o processo do enrijecimento:

uma alternância de frio e de calor,

até que o gume se aguce e mais se afine.

Também isso nos ocorre... O sentimento

tem de esfriar, às vezes... Só o amor

não é perpétuo para o fim que se destine...

FERRARIA II

Será assim na vida: o martelar,

golpes constantes, calores e tortura

nos enrijecem, mas quebra-se a ternura;

alheio alívio precisamos alcançar...

Mas quando tudo é fácil de moldar,

a nossa alma permanece impura,

moldável e pliável... Nunca dura

esse formato a que se deve adaptar...

É essa linha fina e equilibrada,

entre a dor e seu alívio, calculada,

que cria o aço e a alma temperada...

Como é difícil aos outros educar!...

Mesmo que em nós seja a têmpera alcançada,

talvez até se perca... ao se tentar!...

FERRARIA III

Existe a alma em crisálida perfeita,

adormecida, enquanto se refaz

dos pesadelos que sua mente traz

da velha encarnação antes sujeita.

Mas a crisálida da alma é de aço feita,

muita vez, quando o tempo se desfaz

tal alma busca quebrar o tracanaz

em que se encontra essa memória estreita.

Em seu esforço amargo, contrafeita,

percebe não consegue perfurar

a indesejada proteção constante,

que só pode de fora ser desfeita

por esses golpes que a podem lastimar,

mas que a abrem para o mundo circunstante.

FERRARIA IV

Ou talvez esteja a alma adormecida

na calidez arcana do casulo

e precise de um susto, por que o pulo

desfaça assim o conforto e, para a vida,

novamente a desperte. Tal ferida

é como a chicotada em que me açulo,

à luz de meu remorso. E fico fulo

de raiva de mim mesmo, por guarida

ter dado a tais instintos. Certamente,

é então que esta modorra e complacência

são desfeitas pelos golpes desse malho,

com que o mundo de fora, claramente,

me arranca para fora da indolência,

ao rasgar-me a crisálida de um talho.

FERRARIA V

Sei muito bem que não brota em mim somente

este contentamento malsão, a subserviência

ao que o mundo quer de mim, esta falência

submissa ao dever a se cumprir frequente;

a maioria dos que vejo em meu ambiente,

acomodados em tranquila desistência,

apenas se distraem ou amargam a veemência

de seus azares, como os chamam, realmente.

E também tu, ao aceitares sem lutar

o que a vida escorrega em teu regaço,

estás morna e adormecida em teu casulo;

por isso, aqui estou eu, a te lembrar

que nenhuma borboleta sai ao espaço

sem as asas desfraldar, em leve pulo.

FERRARIA VI

Por isso, não te queixes, companheira,

das mágoas de tua vida e da amargura

que te prende em suas mãos, que te segura,

tão firmemente, que te vês inteira

forçada a deglutir a derradeira

gota de fel, que tanto te enclausura,

sem perceberes que é esperança pura,

tua chave do gradil, cela de freira...

Porque existe a larva que se apruma

e seu invólucro abre com verruma,

para tornar-se simples mariposa,

enquanto as que o precisam ter rasgado,

pelos golpes de um malho mais pesado,

são borboletas de asas cor-de-rosa.

FERRARIA VII

A vida é tal casulo e tal mortalha:

a um tempo te protege e te assassina;

sem teres dores, a tua função divina

jamais se realiza e nem se talha.

Como a semente que para a luz se esgalha,

rompida a grossa casca que a confina,

é para a luz que a alma se destina:

dentro ao caroço seus dotes não espalha.

Como o nenê que rasga sua placenta,

após passar por longa gestação

e surge à luz com tanto alumbramento,

feliz é quem na vida se apresenta

com a certeza de uma nova exaltação,

após romper os grilhões do sofrimento.

FERRARIA VIII

Pareça embora até contraditório,

somos escravos do acomodamento;

mas é somente pelas dores de um momento

que alcançamos tal dom leve e ilusório.

Mesmo que julgues apenas irrisório,

há um certo expandir do crescimento,

mas a crisálida morre em tal portento

e cada golpe tem soar premonitório.

Ainda que seja teu casulo seda,

macia e confortável sua acolhida,

sempre é melhor que seja abandonado

e é por isso que te desfere o fado

esses golpes com que o gládio desenreda

esse novelo inútil de tua vida...

FERRARIA IX

Roda o moinho e roda mais a vida

e, aos poucos, se desgastam todos dois;

à ferraria os eixos vão depois,

derretidos em centelha dolorida,

malhados pela força desferida,

aquecidos pelo fole, são anzóis,

instrumentos de trabalho ou armas, pois,

são eixos novos com que a mó é conduzida.

A cada golpe do malho rebatido

saltam centelhas, mil pequenos sóis,

que logo se desfazem pelo espaço...

Igual que um dom por duendes concedido:

só queimam por instantes, arrebóis

de mil auroras que te morrem no regaço.

FERRARIA X

Na ferraria se ferram os cavalos:

penetram fundo os cravos, porém firmam

as ferraduras que seu passo afirmam

quando passam por estradas ou por valos.

Os cravos desta vida são esqualos

que mordem ferozmente e dilaceram

farrapos de tua alma, a que se aferram

e não sabes que fazer para afastá-los.

Estes cravos nos concedem segurança

como os sapatos de ferro dos equinos:

é bom sofrermos tais pequenas dores,

porque as mordidas são cravos de lança

que assim nos fortalecem os destinos,

mesmo que falhem todos os amores.

FERRARIA XI

Mas também lá se forjavam os portões

e outros adornos para casas nobres,

os utensílios de moradas pobres,

mesmo talheres para as refeições...

Pois estas tão variadas produções,

igual que as proteções com que recobres

teu corpo e mesmo que redobres

as tuas defesas, são novas brotações.

Quando a alma é ferida por dor leve,

se recupera fácil e renova,

endurecida contra mal maior,

mas se não sofre, tampouco assim se atreve

a enfrentar ataques que lhe mova

um mau destino em máscara de amor.

FERRARIA XII

Bem ao contrário de São Paulo, eu digo:

o mal que quero é o mal que nunca faço,

o bem que não desejo é o bem que abraço,

para tal fim, maugrado meu, eu sigo.

Da ferraria, o duro malho abrigo

constante e firme neste meu regaço:

o meu casulo por mim mesmo esgarço,

mas meu futuro com tais golpes ligo.

Eu bem quisera tornar-me borboleta,

sem precisar receber golpes de malho,

mas esse é o preço que aceito para o céu

tornar em minha morada mais dileta,

enquanto abro caminho, talho a talho

e do casulo espalho as painas como um véu!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 26/03/2011
Código do texto: T2871013
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