ORGANISMO & MAIS

ORGANISMO

Se eu comparar poesia à minha bexiga

Te causarei um choque, caro ouvinte?

Esquece, pois, o choque: mas pressinte

Que símile mais certa eu não consiga.

Pois para mim é assim: uma pressão

Que se acumula desde o baixo ventre,

Premendo o diafragma se adentre

Nos domínios sacrais do coração...

Que já numa explosão ruge de afeto

E sai a maquinar novo soneto

E para isso engaja olhar e mão;

E o verso se derrama multifário,

Qual ouro líquido em vaso sanitário

E o corpo inteiro torna-se emoção!...

CONDÃO

Com freqüência, o que o povo mais despreza

Assume real beleza e singular,

Que, num momento, assalta o nosso olhar

E põe em dúvida quanto antes se preza...

Pois eu vou te dizer: das mais bonitas

Coisas que vi --- também mais desprezadas --

Foi contemplar na grama rejeitadas

Fezes cobertas de moscas esquisitas...

Os corpos verdes, de ouro cintilantes,

De azul e prata, em chispas de poesia,

A cintilar suas asas rebrilhantes,

Em uníssono zumbido de harmonia:

Como se fora um broche de diamantes

Abandonado assim na pradaria...

INEXPERIÊNCIA

O mais lindo do caso, é que não sinto

mais que alegria ao ver ideal adiado,

tal qual se virgem fosse, sem cansado

sentir o corpo gasto de absinto...

Minhas tensões se foram: renasci!

Junto de ti, quais jovens namorados,

meus membros se amolecem de encantados

e no teu beijo leve me perdi...

E esse hesitar que aos trinta magoaria,

ao meu verdor apenas pequenino

de vinte anos, tanto amor traria...

Junto de ti, retorno a ser menino,

e as frustrações que adulto sentiria

tomo por dote meigo do destino!...

REVENANT

Is there a woman pure, is there a saint?

Someone to love music and art and grant

herself but for the sake of a dream?

her caution leave for a fate unseen?

Again she's back, a-reckoning for gone

my allegiance to her, fearing me prone

to take another path and so to pledge

my soul; my heart a love anew to fledge...

Because she's a woman, and guile

belongs to the coyest and most pure

and her bias am I therefore to endure...

In her female ways wise and wile,

although always wanting to be free,

will never ever she let go of me...?

COMPLACÊNCIA

E existe mais ainda: em ser maduro,

sabendo que és mulher e que me queres,

que tudo me darás, quando puderes,

sem que eu precise demonstrar-me duro,

o que não sou, por certo -- e precisara

fingir de ser, fingir mais experiência

para mostrar ser homem, ter potência

se adolescente eu fosse e me encantara,

posso entregar-me ao gozo do momento,

numa delícia em puro sentimento,

sem ser escravo tão só da sensação

que, por nova não ser, é mais ditosa:

sabendo como achar-te deleitosa

nos escaninhos do meu coração...

ARTÉRIAS

Se me mandares tarefas e trabalhos,

Buscando correção, ninguém jamais

Irá achar estranho, quanto mais

Troçar de ti em julgamentos falhos.

Assim é fácil falar de sentimentos:

Vão em sonetos só -- obras de arte

Que envio para muitas e destarte

Não te darão desgostos nem lamentos...

Mais um segredo entre nós dois: sonetos

Não são obras de arte, são neurônios

Transmutados em versos, são axônios

Enraizados fundo; são completos

Sistemas de sinapses; e nos dão

Jatos de sangue em forma de canção.

SKOAL

Esta forma poética da saga

Está contida em versos rebrilhantes:

Estáticos os versos inquietantes,

Estatelados em lutas e combates.

Ver tais poemas é como ver coágulos,

Versos de sangue e fezes, versos loucos,

Versando morte e glória, versos roucos

Vergastam ventos de fragor gelado.

Amor não tem lugar nestes poemas,

A morte é deusa e mãe, a morte é vida

Amortalhada no estertor da história.

São versos frios de geada e plenilúnio,

Santificados somente no martírio

Sacramentado pelos deuses mortos.

MADRINHA

Eu quero agradecer num verso apenas

por teu abraço meigo e teus olhares

permeados de ternura, nos milhares

de simples ocasiões, maçãs morenas

que partilhas conosco, petiscadas

em doações sinceras, domingueiras,

e de alta madrugada, hospitaleiras

de vinho e gasolina marchetadas,

no mesmo proteger, leve e perfeito,

que exige o preço apenas do respeito

e se derrama em véus de castidade,

num tutelar sorriso, qual se ela

fada-madrinha fosse e cinderela

vestida de condão por amizade!...

IMPULSIVO

Eu tive a pretensão transiente de querer

Cortar destes poemas o fluxo; por qualquer

Insulto recebido, sem intenção sequer:

Talvez fora melhor parar de fazer versos.

Somente descobri de novo, sem surpresa,

Que fechar esta eclusa em perenal certeza

Não vem ao meu poder; fragílima tibieza:

Os sonetos que trazem sabores tão diversos

São vivos de per si, estranhas criaturas,

Inquietas, turbulentas, nas intenções mais puras

De só sobreviver, nas leis da Natureza;

E não se submetem a um gesto de incerteza,

Mas cantam galhardia, alçando-se às alturas

E apenas interpreto seus sonhos de altiveza.

RESGATE

E hoje, quem diria? - Ria divinamente

aquela a quem amei - Meio insegura

que esse coração - São raridades!

persista a desejar - Jargão de enamorados

o mesmo ideal azul - Azul, mas não de frio,

que nunca o satisfez - Festim para famintos,

que não dessedentou - Tomou sem retribuir

enquanto experimentei - Teimosa em meu capricho

e apenas consegui - Guizos e lantejoulas

e apenas obtive - Tive, porém perdi

folhas secas por ouro - Ouropel de latão

e hoje que retorno - Torno alma emurchecida

na espera dolorosa - Rosa morta no cio

ainda o encontro ali - Alimentando o nada.

FAINA

Tu sabes bem, mulher, o quanto fazes,

Em teus gestos de ausência e de abandono,

De quanta vez, a murmurar de sono,

Me negas de teu leito etéreas gazes...

E quanta vez sussurras o convite

Apenas com teus olhos indiscretos,

A pretender-me prazeres tão secretos

Que o coração de pena já se agite.

E no entanto, eu sinto uma peninha,

Talvez maior que quanta dor eu sinta,

Que para amor teu corpo não consinta.

É que eu entendo a sorte bem mesquinha

De quem podia ungir-se de rainha

E não se unge, por que amor não sinta.

ARGANAZES [ratos do campo]

Meus olhos te encontraram e viram refletida

A mesma estrela mesma que em meu olhar luzia,

A meiga e morna estrela de ardor-feitiçaria

A espadanar centelhas de almácegos e vida!

Meus olhos te encontraram, no ardor daquele instante,

Na morna estrela meiga, na mansa e mesma estrela,

Fecunda e ribombante, na mesma estrela dela,

Que a carne perseguia em rumo palpitante!

A crocitar num chio bem fundo ao cerebelo,

Fragor ocipital, sonhar em que rebelo

À minha vida fugaz o quanto mais ressinto:

Debicando em minhalma o tumular flagelo

Que explode num vigor de cego que, pressinto,

É o sangue trasmutado em mel e vinho tinto!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 21/03/2011
Código do texto: T2860935
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