A estrada - Jack London
Aventuras de um vagabundo pelas ferrovias americanas durante a primeira grande crise econômica do país (1893-1898)
Jack London - A estrada, SP, Boitempo Editorial, 2008
A Estrada (The Road), livro que influenciou diversos escritores americanos, notavelmente Jack Kerouac (1922-1969) e seu On The Road (por aqui Pé na Estrada), foi publicado pela primeira vez em 1907, quando Jack London (1876-1916) contava 31 anos. Mas essa história de perambulação (ou vagabundagem) pelos Estados Unidos, que é intensamente autobiográfica, se refere à sua juventude nos anos 1890. Época em que o país passou por sua primeira grande crise econômica, originada por uma crise bancária internacional, sobretudo inglesa, que ficou conhecida como Pânico de 1890. Os EUA foram fortemente afetados entre 1893 e 1898, quando diversas empresas quebraram e o desemprego atingiu cerca de 20% de sua força de trabalho.
As peripécias de London para sobreviver naqueles tempos – sobretudo arranjar comida e um lugar para dormir, mas também viver alguma aventura, característica marcante de sua personalidade – estavam intrinsecamente ligadas às ferrovias que cortavam os EUA de costa a costa. Tanto que em certa altura do texto ele introduz o verbo “ferroviar” para caracterizar o modo de vida que vivia então. Nos capítulos iniciais ele fala dos macetes e truques de que os “vagabundos” se valiam para não se darem tão mal na vida errante que levavam: como e quando pegar um trem em movimento, escapar dos guarda-freios, pedir esmolas quando paravam nas cidades, conseguir um prato de comida, praticar pequenos roubos e furtos etc. Desse modo, viviam aventuras variadas, que London conta com propriedade, porque não apenas as observou, também as experimentou na pele.
A situação mais difícil, mais arriscada, era escapar dos funcionários das ferrovias (guarda-freios, maquinistas, foguistas etc.), que podiam por vezes não apenas jogar os viajantes indesejáveis fora do trem como aplicar-lhes uma bela surra ao descobri-los viajando de carona escondidos nos vagões. Outra preocupação era não morrer de frio durante o inverno, já que era quase impossível ficar aquecido nos vagões, a não ser que os homens dormissem uns encostados nos outros criando assim uma fonte de calor. Mas a maior parte do tempo eles passavam frio mesmo, congelavam.
Por conta de vadiagem, enquanto passeava por Niagara Falls, London foi preso e passou um mês numa penitenciária. Essa história toma dois dos capítulos mais interessantes do livro. Ficamos sabendo como era a vida dos prisioneiros, os macetes de que se valiam para sobreviver entre bandidos e com uma dieta de praticamente apenas pão e água três vezes por dia. Mas se viravam: havia comércio e trocas entre eles e até o fogo para acender um cigarro rendia algum proveito. London registra, mas não entra em detalhes acerca dos abusos praticados pelos policiais contra os presos: “Vi com meus próprios olhos, naquela prisão, coisas inacreditáveis e monstruosas. E, quanto mais convencido ficava, mais aumentava meu temor pelos cães de guarda da lei e por toda a instituição da justiça criminal.” Pois é...
A verdade é que a crise econômica havia fabricado uma legião de “vagabundos” a viajar clandestinamente nos trens. Chegaram a constituir pequenos exércitos, com até cerca de dois mil homens sob a liderança de algum militar populista. Faziam exigências e ameaças às cidades por onde passavam e também às empresas ferroviárias: queriam comida e transporte, uma forma de pressionar o governo a resolver o problema dos desempregados. Dois deles ficaram bastante conhecidos então, o general Coxey e o general Kelly. London esteve sob as ordens desse último: “Partindo da Califórnia e atravessando o Oeste selvagem e bárbaro, o general Kelly e seus heróis tomaram vários trens de assalto (...). [O general] montava um magnífico corcel negro, e, com bandeiras tremulando, ao som marcial de pífaros e tambores, 2 mil vagabundos desfilaram diante dele (...).”
Por outro lado, mais do que de militares, London esteve bastante próximo de policiais, tiras, quase sempre fugindo deles. Há todo um capítulo, o último do livro, dedicado a esse assunto. Mostra que então, os tiras, que ganhavam honorários por cada vagabundo (ou criminoso) preso, precisavam que sempre houvesse vadios perambulando pelas cidades para que pudessem prendê-los por vadiagem e assim engordar um pouco mais seus salários. E, claro, também havia policiais que dividiam suas comissões com os indivíduos que prendiam. Desse modo o guarda não precisa caçar, como afirma London fazendo humor: ele apitava e a caça vinha diretamente para suas mãos. Bons tempos aqueles...