Os Leopardos de Kafka

 

        “Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; isso se repete sempre; finalmente, torna-se previsível e é incorporado ao ritual”

         Tendo este texto kafkiano como mote, o escritor gaúcho Moacyr Scliar preparou, a pedido da Cia das Letras para a Coleção Literatura ou Morte, o livro Os Leopardos de Kafka. Quinto volume da série, eu o tenho há algum tempo, mas só esta semana resolvi lê-lo e o fiz de uma sentada só. É tão curtinho que mais parece um capítulo do que um livro inteiro. É uma história interessante. Através de uma narrativa utilizando  linguagem simples, Scliar conta com ironia a vida de um homem comum, tão insignificante que vem a ser conhecido como Ratinho. Mas apesar de sua insignificância, na vida de Ratinho  por duas vezes acontecimentos insólitos  ocorreram  tanto que valeu a pena relatá-los.
 

         O texto de Kafka foi o fio condutor para esta história que, começando na Rússia, passou pela cidade natal de Kafka, Praga e culminou no Brasil. O escritor Kafka se tornou, em determinado momento, personagem da história. Ratinho (Benjamin Kantarovitch ) o encontrou em Praga e de suas mãos recebeu o texto citado, que veio, anos mais tarde, parar nas mãos do Serviço Secreto brasileiro, durante o período da Revolução de 1964, sendo confundido com mensagem cifrada.Vocês podem imaginar a confusão que essa história trouxe, desde o seu começo, para a vida do protagonista do livro de Scliar.

        

       A leitura ficcional para mim tem várias facetas. Uma delas é o prazer que retiro das palavras alinhadas uma após outra  contando uma boa história. Mas, a medida que vou lendo, outras facetas vão aparecendo.Idéias vão se aninhando em minha mente e depois provocam um estardalhaço. Fico pensando, não exatamente querendo tirar uma lição, mas compreender a vida. E o que vejo aqui, mais uma vez, é o perigo da crença. Benjamin, um jovem tranqüilo e bem cuidado por sua família, tem como herói, a figura de Trotski. Mas na verdade ele não sabe nada sobre o revolucionário russo. Ele imagina, ele acredita, ele fantasia, molda uma verdade que não existe e por isso, se mete na maior aventura de sua vida, ele, um simplório, que nunca tinha viajado e nem mesmo sabia usar um telefone. E é claro, por isso também tem a maior desilusão de sua vida, que vem a torná-lo mais introspectivo do que é, determinando todos os rumos de seu futuro. Nada tenho contra a imaginação, quando a gente sabe que é imaginação e sua existência serve para alavancar a criação, para tornar real o imaginário. O grande perigo é quando usamos essa imaginação como se ela fosse um fato real, concreto e a partir dela passamos a viver a vida.

 

         Moacyr Scliar ,ao escolher Kafka como seu personagem, cria em Os Leopardos   de Kafka,um personagem Kafkiano.  Um insignificante ratinho, que tal como o personagem de A Metamorfose,Gregor Samsa que se transforma em barata, passa pela vida sem ter um lugar definido entre os homens. É uma história triste,uma metáfora, sem dúvida nenhuma, sobre a realidade humana.  Que para alguns, talvez a grande maioria, é feita de humilhações e indignidades. Muito longe da idéia que se faz de um ser criado a imagem e semelhança de seu criador.