Diário das minhas leituras/49
21/02/2020 – KYUNG-SOOK SHIN
Livro: Por favor, cuide da mamãe
Autora: Kyung-Sook Shin
Tradutora: Flávia Rössler
Editora: Intrínseca
Ano: 2011
O maior mérito dessa história do desaparecimento de uma mãe idosa é permitir que o leitor reflita sobre as suas próprias relações familiares. O sumiço da mãe leva a um sentimento de culpa dos personagens, que passam então a refletir sobre situações passadas, dando-se conta de que não haviam se comportado da maneira adequada a fim de tornar a vida de sua mãe um pouco mais confortável. Pequenos dramas que são evocados nesse momento são também comuns às famílias contemporâneas em geral. À parte dos conflitos de relacionamento, nota-se ainda os da degradação física, que tendem a ser ignorados ou subestimados por aqueles que estão acostumados com uma atitude de sacrifício por parte de suas mães. Trata-se de uma história naturalmente triste e sensível, em muitos momentos comovente. É interessante atentar para as estratégias de foco narrativo nessa história, que mudam de capítulo para capítulo, como, de resto, o próprio ponto de vista do drama, embora todos reforçando a falta de cuidado e a displicência com que, até então, todos tinham tratado o relacionamento com a sua mãe. Mesmo a “primeira pessoa”, que aparece no primeiro capítulo, parece ter um distanciamento de si mesma, a ponto de se autorreferir sempre como “você”. Isso pode significar tanto um processo de análise do próprio comportamento como a dificuldade em assumir a responsabilidade por se ter agido de uma forma considerada pouco louvável. Em certa altura, no quarto capítulo, tem-se um foco narrativo original, a partir justamente daquela que é desaparecida. Ali, é preciso que se diga, há também certa dificuldade de situar o narrador, e com ele os destinatários de sua fala, sendo necessária atenção para identificar a quem se refere termos como filhos, tios e irmãos. Também é um mérito o fato de a história não se resolver da forma que seria agradável.
27/02/2020 – LU XUN
Livro: Novelas escolhidas
Autor: Lu Sin (Lu Xun)
Tradutora: Alicia B. Auzmendi
Editora: Imago
Ano: 1988
Talvez se a gente comparar aos russos as pessoas comecem a prestar mais atenção ao chinês Lu Xun. Ele tem, como o Gógol, um conto chamado “Diário de um louco”, que, no seu caso, é uma sutil, mas poderosa, alegoria sobre a política do seu país. A novela “A verdadeira história de A Q”, um dos seus melhores trabalhos, é amplamente gogoliana, pois versa sobre um personagem cômico e patético em estranhas aventuras do seu cotidiano. Como Turgueniev, Lu Xun também está interessado nos pobres campônios do seu país e, como ele, também os retrata de maneira a evidenciar posicionamentos críticos sobre o sistema vigente. “Saudades do passado” (também traduzido como “Pesar pelo passado”), outro dos seus melhores momentos, é uma novela cheia de sentimento que parece evocar o Dostoievski de “Noites brancas”. Alguns dramas domésticos saem à Tchékhov. E em tudo há a mesma ternura pelos mais desafortunados que se observa nos contos de Górki, de quem Lu Xun também compartilhava a ideologia política. Evidentemente, isso é apenas uma das aproximações possíveis. Seria possível falar da antiga literatura húngara, a evocar o mesmo desconsolo que alguns dos mais bonitos textos de Lu Xun, e mesmo da literatura nórdica, com a natureza desempenhando papel importante em tramas que não tem muito movimento senão o do interior dos seus personagens. Mas isso tudo é apenas para tentar chamar a atenção do leitor para Lu Xun, que é, e nunca deixou de ser, um chinês. São chineses os vilarejos, são chineses os camponeses e são chineses os ritos e costumes, destacando-se o culto aos antepassados. Embora considerado “pai da literatura moderna chinesa”, por vezes Lu Xun também se dedica a explorar antigas lendas do seu país, não hesitando até mesmo em incluir nas suas histórias o mesmo sobrenatural que tão bem caracterizou a literatura antiga chinesa. São dignos de notas os conflitos nascidos entre os modos de vida do campo e da cidade, como em “Minha terra natal” (também traduzido como “A aldeia de meus ancestrais”), cujas diferenças são acentuadas pela própria passagem do tempo. Lu Xun sabia que os campônios chineses viviam uma situação penosa, sujeitos a uma medicina pouco eficaz, além de certos costumes cruéis, e através da sua escrita registrou muitos dramas comoventes dessas pessoas (como em “O remédio”, “Manhã”, “O sacrifício do Ano Novo” e “Divórcio”, no qual se percebe o apelo de uma mulher pelos seus direitos em uma sociedade na qual quase não tinha nenhum). Por vezes (e esses são alguns dos seus melhores momentos) há uma nota existencialista mais acentuada, casos de “Numa taberna” e da novela “O misantropo”. É possível que, se fosse russo, Lu Xun fosse bem mais celebrado.
04/03/2020 – MICHAEL ONDAATJE
Livro: Bandeiras pálidas
Autor: Michael Ondaatje
Tradutor: Paulo Henriques Brito
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2000
Eu escolhi ler esse livro, e não “O paciente inglês”, bem mais famoso, porque, além de o escritor ter nascido no Sri Lanka, a história também se passa lá, o que me pareceu mais interessante para um ano de “leituras asiáticas” como o que estou fazendo. Mas não posso dizer que tenha gostado do livro. Tudo o que pude descobrir sobre o Sri Lanka durante a leitura foi que, em época recente da sua história, o país foi convulsionado por duas terríveis guerras civis simultâneas, aparentemente uma de motivação política e a outra de motivação étnica. Mas, pela simples leitura, eu sequer pude saber o que realmente estava em jogo para cada um dos lados envolvidos nesse conflito. Apenas fui apresentado a um cenário onde os assassinatos haviam se tornado uma prática rotineira. Não foi muito mais o que soube acerca do país, a não ser o fato de que por lá mesmo os homens vestem um tipo de saiote chamado “sarongue”. Louvo o trabalho de investigação do autor para a criação de personagens que fogem do seu cotidiano. Ondaatje criou uma protagonista que era antropóloga forense, outro personagem que era arqueólogo, e ainda um que era médico em um hospital caótico durante os conflitos. Ou seja, os personagens não são escritores ou jornalistas, como tantos escritores, por comodismo, preferem utilizar. A criação desses personagens exigiu pesquisa e acho isso um grande mérito, o problema é que a história em si não foi estruturada de um jeito que me parecesse muito atraente. A orelha do livro chega a dizer que a história poderia ser lida como “uma emocionante história de suspense”, mas isso só pode ser brincadeira. Há um mistério sobre a origem de um esqueleto, mas a história está longe de configurar suspense, muito menos emocionante. Também não cheguei a ver “o cruzamento entre prosa e poesia”, que dizem ser tão pronunciado no autor. Honestamente, eu só vi prosa, no máximo um ou outro momento de prosa escrita em tom mais lírico, o que não me parece suficiente para ser classificada como poesia. Em meio a história dos conflitos no país, há também certos mergulhos nos dramas pessoais de cada personagem, mas achei que faltou algo como uma “unidade” maior na trama. Enfim, não se pode acertar sempre com as leituras.
06/03/2020 – BUDDHADEVA BOSE
Livro: Meu tipo de garota
Autor: Buddhadeva Bose
Tradutor: Isa Mara Lando
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2011
Trata-se de um pequeno “Decameron”, bem mais lírico, que se passa na Índia moderna. Aqui não é uma terrível peste que reúne um grupo de pessoas para contar histórias, mas o simples atraso de um trem. Um grupo de quatro homens já com certa idade se vê obrigado a passar a noite na estação de trem e, para passar o tempo, põe-se a contar histórias de amor como as do clássico do Boccaccio. As histórias do livro de Bose (são quatro apenas), no entanto, não possuem absolutamente nada da verve satírica do autor italiano. São contos essencialmente poéticos e com uma acentuada nota melancólica. A própria motivação para que o grupo desse início às histórias tem a sua beleza: enquanto esperavam em uma sala na estação de trem, um jovem casal assomou à porta, irradiando felicidade amorosa, olhando para dentro e logo saindo. Esse simples episódio fez cada um se lembrar de antigas histórias de amor que viveram ou que tomaram conhecimento. Assim como o “Pequeno Príncipe” não é um livro para crianças, por trazer justamente a mensagem da infância, talvez esse não seja um livro para apaixonados, por trazer a mensagem dolorosa que, com frequência, está por trás das nossas paixões. Há a paixão que não se realiza nunca, a que leva à vingança, a que começa na juventude e, com o passar dos anos, não se torna mais do que uma persistente idealização, em oposição aos próprios parceiros atuais. Há aquela paixão arrebatadora que ameaça levar tudo de roldão, mas que no fim das contas passa, e então se aceita outro destino, um que talvez seja até mais feliz. E há um tipo de paixão que leva à sujeição do seu portador em relação ao objeto amado, a uma adoração praticamente religiosa que não se importa sequer que o ser amado ame outra pessoa. Tudo passa pela pena de Bose, todas as incompreensões, os desacertos, os desencontros, os erros, os acertos do tempo. É um livro pequeno, singelo, adorável, uma graça. E pensar que eu, quando o peguei, havia pensado: “Bá, só mais umas historinhas de amor”. Eu não sei de nada.
10/03/2020 – ATIQ RAHIMI
Livro: Maldito seja Dostoiévski
Autor: Atiq Rahimi
Tradutor: Marcos Flamínio Peres
Editora: Estação Liberdade
Ano: 2012
“Mal levantara o machado para descê-lo sobre a cabeça da velha quando a história de Crime e Castigo lhe atravessou o espírito”. Convenhamos, é uma excelente frase para se começar um livro. E partir dela somos arrastados por uma narrativa alucinante, essencialmente objetiva, e que prende a atenção do leitor do começo ao fim. Confesso que o motivo para escolher ler esse livro, e não algum outro do autor, foi a sua referência ao Dostoievski, mas o livro faz muito mais do que usar o escritor russo como chamariz. É uma história que se sustenta por si só e que acaba por relativizar algumas conclusões dostoievskianas. Há, como em “Crime e castigo”, o crime contra uma velha, descrito logo no início. Só que o crime do livro de Rahimi é um crime sem sentido, não porque o seu autor não tivesse lá suas motivações, e sim porque ele está inserido num contexto onde a própria vida já perdeu o seu valor: o Afeganistão em guerra. Num cenário onde mísseis caindo se tornam parte do cotidiano, numa cultura em que o assassinato encontra justificativa na necessidade de vingança, que sentido pode ter o crime cometido pelo pobre Rassul? Por acaso haverá alguém disposto a penalizá-lo pelo seu crime? A única voz a sugerir a culpa do criminoso é justamente a consciência do personagem, uma consciência que está continuamente em conflito com tudo que o cerca, e que talvez o levasse ao suicídio, se também o suicídio fizesse algum sentido quando não se acredita no próprio valor da vida. O suicídio e o assassinato só se justificam quando se acredita que as suas vítimas mereciam viver – do contrário, que diferença faz? O autor, portanto, traz a profundidade do romance dostoievskiano para um ambiente onde a vida perdeu o valor, e os resultados que emergem daí são dos mais interessantes. Outra máxima confrontada no livro, essa de “Os Irmãos Karamazov”, é a bem conhecida de que, “se Deus não existe, tudo é permitido”. No cenário do Afeganistão em guerra, um Deus existia – Alá –, mas, então, como se explica que, mesmo assim, tudo era permitido? Se Deus existe e mesmo assim não há limites para a crueldade, então o que sobra da frase de Dostoievski? Não seria o caso, antes, de esse mesmo Deus ser usado para legitimar a falta de limites? Essa é uma inversão que é sugerida ao longo do livro e que representa o ponto alto de suas discussões filosóficas. A vida, ao menos no ambiente apresentado no livro, para ter o seu valor, precisa estar associada a alguma causa. Se você é um filho de comunistas – e eles eram combatidos com fervor –, então o crime que você comete pode ser visto com outros olhos – foi o crime de um comunista, mesmo que você mesmo não seja. Se as joias que somem são a de um figurão, então também você merecerá ser julgado como um ladrão. Mas de fato não há uma valorização da vida pelo que ela é intrinsecamente, apenas por valores a ela associados e que dependem das circunstâncias. É exasperante ler o personagem querendo se entregar, confessar o seu crime e nenhuma autoridade lhe dando a mínima! O enredo atinge níveis kafkianos de absurdo, e não seria improvável fazer associações com “O processo”. Os absurdos expõem a banalização da vida e, ao mesmo tempo, como a noção de vingança está sempre bem presente, e não apenas no oriente, pois – e isso também é dito – mesmo um processo, teoricamente mais civilizado, é antes de tudo uma vingança. Como acabar esse ciclo de vingança? Só quando um dos lados decide se sacrificar. Como Rassul fez.