Diário das minhas leituras/47

10/01/2020 – MILAN KUNDERA

Li há mais de uma década “O livro do riso e do esquecimento”, mas deixei anotadas algumas impressões, que, em uma síntese que deixa de lado os meus arroubos da época, revelam o seguinte:

Todas as páginas, embora dotadas de uma crueza que à primeira vista pode assustar, são recheadas de vida e sentimento. Há muita ternura pulsando ali. As metáforas são criativas, bem explicadas e ficam martelando o tempo todo, de modo a ajudar na compreensão da obra. A estrutura não é linear. São sete partes divididas em pequenos capítulos, com rupturas na narrativa, por vezes para dar lugar aos maravilhosos insights do autor, que dialoga com a sua própria história pessoal. À exceção de Tamina, a personagem que é para ser a principal, e que aparece em duas partes do livro, os demais não voltam, mas deixam no leitor o desejo de que retornassem, o que é um sinal de que a história contada sobre eles foi boa o bastante para despertar o nosso interesse. Mesmo com a não linearidade, há uma sensação de unidade por trás do conceito do livro.

10/01/2020 – R. L. STEVENSON

Li “O médico e o monstro” quando tinha 19 anos e deixei algumas impressões escritas na época. Entre as coisas que se salvam no que eu anotei, está a ideia de que, nos dias de hoje, já não é possível distinguir quem é o médico e quem é o monstro, pois ambos têm a mesma aparência agradável. Mesmo as atitudes agora são parecidas, já que o "monstro" foi aperfeiçoando as suas técnicas de camuflagem. Mr. Hyde só vai ser descoberto bem mais tarde, em algum escândalo - ou talvez nunca seja. Até lá, vamos continuar achando que só existe o nosso querido médico. Diz o Henrique de 19 anos: "No livro, o Dr. Jekyll se transforma em Mr. Hyde no meio da rua. Como Hyde é procurado da polícia, Jekyll se desespera. Ajeita a sua roupa o melhor que pode, e quer fugir dali o mais rápido. Hoje não precisamos mais dessas coisas. Aperfeiçoamos nosso estoque de mentiras de uma maneira brilhante, de modo que mesmo sendo Hyde, ainda mostraremos com todos os argumentos que na verdade se trata de um erro de interpretação, e somos ainda Jekyll. Teremos todas as testemunhas que quisermos, e faremos com que o caso termine em pizza. Contaremos, obviamente, com a colaboração da Justiça e da Gente Poderosa, que mantêm intrínsecas relações com o monstro". O Dr. Jekyll, na carta que escreveu explicando o seu segredo, afirmava que Hyde chocava porque só tinha o lado mau, e não o lado bom e o ruim, como as pessoas normais. Aproveito então para criticar o julgamento que fazemos das pessoas à nossa volta, porque, via de regra, ele segue a mesma crença de que ou alguém é completamente bom ou completamente mau. Vemos no outro apenas Mr. Hyde. Nós, surpreendentemente, mantemos a nossa aura de equilíbrio, austeridade e conformidade, de acordo com os costumes da nossa sociedade. Teimamos em achar que só temos ligação com Dr. Jekyll. O médico fala algo importante no livro: “Posso me livrar de Mr.Hyde quando eu quiser”. O Dr. Jekyll realmente acredita nisso, e está certo. Mas pouco faz para que isso se concretize. Com o tempo, a presença do monstro vai se tornando rotineira. Vai abrindo concessões. Se torna mais conivente com seus desatinos. Afinal de contas, é uma parte dele – ainda que seja uma parte ruim. Quando resolve fazer um esforço, o monstro fica acalentado dentro de si por algum tempo. Mas pedindo uma nova chance, querendo sair e voltar a fazer tudo que gosta e sente prazer. Até que Dr. Jekyll não resiste mais. Vai correndo tomar a fórmula, e Mr. Hyde está a solta novamente. Realizados todos os seus vis desejos, volta a tomar do mesmo líquido, e Dr. Jekyll retoma o comando. Sem culpa alguma, nem nada que possa comprometer a carreira e a honra desse médico. O pior é que de tanto se acostumar com a presença de Mr. Hyde, o Dr. Jekyll vai morrendo. Toda a sua bondade aos poucos vai sendo diminuída. O plano maléfico de Mr. Hyde está dando certo, e lentamente ele tomará conta do médico. O tempo consegue fazer tudo. Dessa vez, terá que fazer um imenso esforço para voltar a forma original, para ser o compassivo Dr. Jekyll. Alguma semelhança com algo da nossa própria vida? Há gente que diz que há muito de médico e monstro em outras pessoas, como em um padre pedófilo, mas eu digo que há muito de médico e monstro em cada um de nós. Não somos, certamente, a completa exteriorização do mal, como era a criatura idealizada no livro. Mas o hábito é um perigo e bem pode ser que, uma hora, o monstro engula o médico em nós.

13/01/2020 – PARK WAN SUH

Já descobri as primeiras pérolas deste meu ano de leituras asiáticas. Park Wan Suh é uma escritora sul-coreana que escreveu dois contos presentes em "Contos contemporâneos coreanos" (Landy, 2009). Ambos são vigorosas narrativas em primeira pessoa de mulheres de meia idade. "A pequena experiência" é uma aventura kafkiana na qual uma mulher enfrenta a situação de ter o seu marido preso de forma injusta pela ditadura coreana. Acompanha-se a luta dela para conseguir ao menos ver o marido e falar com ele, coisas que só se consegue com alguma corrupção. Nota-se todo o drama dos familiares dos presos, sobretudo o das classes mais pobres. Há discussões muito interessantes sobre a justiça e a liberdade. "Três dias daquele outono" é o impressionante relato de uma mulher que, tendo sido estuprada jovem, decidiu-se fazer "ginecologista", o que, naquele ambiente, significava promover o aborto de crianças indesejadas. Era o ódio pelo que fizeram contra ela e pelo que as mulheres estavam expostas que a motivava. Ela fica nessa profissão por décadas, atendendo desde prostitutas a "cidadãs de bem" que iam à igreja. Perto do último dia de trabalho, porém, ela manifesta um desejo: quer trazer uma criança à vida. Texto cru e forte, mas muito belo. Dois textos bastante fluidos que me entusiasmaram e me fizeram crer que essa Park Wan Suh não deve nada a uma Margaret Atwood.

13/01/2020 – CONTOS CONTEMPORÂNEOS COREANOS

Obra muito importante por ressaltar não apenas mais uma literatura pouco difundida no país, mas porque se trata de um povo que mantém uma relação muito especial com o conto. De fato, entre os coreanos há a tradição do “Sin-Chun-Mun-Ye”, que é um concurso literário bastante concorrido voltado ao conto e que é realizado pelos principais jornais do país desde os anos 20 do século passado. Os coreanos parecem ter se dedicado tanto à produção de contos ao longo das décadas que seria de se esperar que tivessem as suas histórias mais difundidas pelo mundo. Este é um livro que contribui para saldar essa dívida. Sem falar que as histórias apresentadas se valem com frequência de eventos históricos das duas Coreias, que nós aqui do Ocidente sabemos muito por cima. Como todas as antologias “nacionais”, também essa se mostra especialmente útil para aproximar o leitor brasileiro da cultura e da história do país apresentado. Há também outro livro, de 1985, chamado “Contos coreanos”, que, feita uma média de todos os contos, talvez até pareça melhor, mas em “Contos contemporâneos coreanos” há os contos acachapantes feitos por essa extraordinária Park Wan Suh, que me pareceu uma espécie de Margaret Atwood da Coreia do Sul. Foram aqueles de que mais gostei, mas também gostaria de ressaltar “Espelho de cobre”, escrito por Oh Jung-Hee (também mulher), que retrata aspectos cotidianos de um casal de idosos que havia perdido o filho único por ocasião das manifestações estudantis na Coreia e que agora interagia com uma endiabrada criança dos seus vizinhos. Hwang Sun-Won, nascido na Coreia do Norte, um dos autores que eu já conhecia do outro livro de contos coreanos, comparece nesse com três, sendo que um deles é “Chuva de verão”, que eu havia lido como “Aguaceiro” e gostado mais. Não sei se a versão anterior havia sido traduzida diretamente do coreano, mas foi realmente uma leitura que me agradou mais. O mesmo aconteceu com Choi In-Ho, cujo texto sabidamente vertido do coreano, “O quarto de outrem”, não me agradou tanto quanto “O outro quarto”, a sua versão anterior, e que talvez não seja tão fiel assim ao original (bastante ver a mudança de sentido que existe no nome do conto). O livro conta também com contos de Kim Chae-on (e seu estilo um tanto gogoliano), Yi Chong-Jung (num conto com memórias da guerra entre as duas Coreias) e Lee Ho-Cheol, que, em “O desgate”, expõe o destino de separação familiar existente devido ao conflito entre as duas Coreias. Um dos contos de Hwang Sun-Won, chamado “Fragmento quente”, também expõe violentos conflitos em que se envolveram os movimentos estudantis, assim como os dramas pessoais daí decorrentes. Vale a pena conhecer mais sobre a Coreia.

15/01/2020 – ELIAS KHOURY

Trecho interessante tirado de “Porta do sol”. Talvez eu não seja tão radical assim em relação à descrição de pessoas e ambientes, mas talvez eu também não esteja tão longe disso no que aprecio na literatura.

“Não lhe descreverei a escuridão porque não gosto de descrever. Desde os tempos de escola, detesto a descrição. Quando o professor nos dava uma redação, do tipo “Descreva um dia de chuva”, eu nunca soube o que fazer, porque detesto comparar algo a outro, pois a coisa se descreve por si e quando a comparamos, acabamos esquecendo-a. O rosto de uma moça se parece com o rosto de uma moça, não com a lua. Tanto a brancura como o arredondamento são diferentes. Quando dizemos que o rosto de uma menina se parece com a lua, esquecemos da menina. Descrevemos para esquecermos e eu não gosto de esquecer. A chuva se parece com a chuva, isso não é o suficiente? Basta chover para sentirmos o cheiro da terra”.

15/01/2020 – ELIAS KHOURY

A leitura de “Porta do sol” é tranquila, no sentido de que se lê com fluidez (o escritor talvez compartilhe do pensamento do seu personagem a respeito das descrições), mas até agora (li 20%) não me atraiu tanto assim. É interessante, claro, conhecer mais a respeito da região do Líbano e da Palestina, pois é esse o cenário da história, assim como dos terríveis conflitos a que essas regiões estiveram e estão sujeitas. O que mais gostei até agora foi a parte da história em que uma velha expulsa da Palestina e que morava no Líbano volta para visitar a sua casa, onde morava uma judia com origem justamente no Líbano. Estavam as duas fora do seu lugar e com o seu destino trocado, de certa forma. Deve ser um drama bem comum.

23/01/2020 – ELIAS KHOURY

“Portal do Sol” é um romance interessante por oferecer a possibilidade de se conhecer a visão palestina dos conflitos no Oriente Médio, além de permitir um melhor conhecimento dos ocidentais da realidade a que toda aquela região tem estado sujeita nas últimas décadas. O livro é o extenso monólogo do homem que cuida, em um precário hospital no Líbano, de uma liderança palestina que se encontra em estado vegetativo. No meio das recordações que evoca enquanto cuida do seu paciente, emergem histórias variadíssimas, envolvendo terríveis dramas familiares da região. É preciso que se diga que, a certa altura, perto do final da primeira metade, as histórias se confundem de tal forma que é até difícil entender quem exatamente está falando. Mesmo isso, contudo, tem a sua razão de ser, diante do cenário caótico em que se vive naquelas bandas. O livro melhora mesmo é no início da segunda metade. É quando aparece um grupo de ocidentais interessados em conhecer mais sobre o massacre de palestinos no Líbano em 1982, a fim de produzir uma peça a respeito. É quando surge Catherine, a atriz, personagem bem interessante, por ser quem melhor problematiza as contradições da posição ocidental em relação ao conflito. Ela sabia que devia estar ao lado dos judeus por conta daquilo que haviam sofrido durante o Holocausto, e por isso tinha dificuldade em lidar com uma situação em que as vítimas eram também os carrascos. Ela trabalha esse contradição na sua cabeça, em busca de solução, e sai com a ideia pacificadora de que era preciso convencer os judeus de que, ao matar palestinos, matava-se também judeus a eles miscigenados. Em determinado momento, o narrador da história, no seu “diálogo” com o Yunis, o homem deitado na cama, chega a considerar a possibilidade dos palestinos levarem em conta o drama judeu do Holocausto. Essas interações entre culturas opostas “até a morte” estiveram entre os momentos que mais me agradaram na leitura – que é possivelmente extensa demais. Há boas reflexões, histórias tristes e descrições poéticas.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/01/2020
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