Diário das minhas leituras/45

26/11/2019 - IVO ANDRIC

Ivo Andric deve ser o único escritor nascido na Bósnia a ter alguma coisa publicada no Brasil, mas não se pense que se trata de um nome obscuro na literatura mundial: ele é um vencedor do Nobel. Como muitos outros, é um Nobel que anda completamente esquecido no mercado editorial brasileiro. “O pátio maldito e quatro contos” é um dos raros livros dele a que temos acesso por aqui. A história que dá nome ao livro é uma novela ou mesmo um romance pequeno. Uma das coisas que dizem os críticos a respeito da obra de Andric é que ele trouxe à narrativa bósnia um ambiente de “As mil e uma noites”, o que se explica por a Bósnia ter estado sob o jugo do império otomano, por meio do qual teve contato com o mundo árabe. E há realmente alguma coisa da Sherazade no gosto de Andric pelas histórias, a tal ponto que as histórias que ele conta podem facilmente se desdobrar em outras, uma dentro da outra. Isso pode ser observado em “O pátio maldito”, que se passa em uma prisão em Istambul, com toda sorte de pessoas, de diversas nacionalidades, muitos delas presos ali sem qualquer evidência de culpabilidade. Cada uma delas tem a sua história, ainda que umas sejam abordadas de forma mais detida do que outras. Embora se possa, a partir dessa novela, fazer algumas reflexões kafkianas, e também vislumbrar o que deve ser uma crítica aos sistemas ditatoriais de todo tipo, ela tem menos “filosofia” do que se poderia imaginar para situações de aprisionamento. Quem concentra as histórias do pátio maldito é o Frei Pedro, e com ele também será feita a travessia dos quatro contos do livro, todos com a marca turca na Bósnia, todos criados a partir de histórias que o religioso lembrava, evidenciando diversos conflitos entre os diferentes povos da região. Dos quatro contos, talvez o mais curioso seja “Farsa na estalagem de Samsara”, em que o Frei Pedro traz à memória o episódio em que ele e outro monge quase foram forçados a se casar por um grupo de bandoleiros a que estiveram sujeitos. Essa história também é contada no contexto de outra, na qual pode ser observada a opressão de autoridades turcas contra a ordem religiosa a qual o frei pertencia. Não vi, é verdade, nada de tão excepcional assim na leitura do livro (que é, contudo, bem fácil de se ler), só que é difícil fazer um juízo de valor a respeito de tão poucos textos. Pelo que pude apurar, Andric produziu ao menos quatro livros de contos e seria preciso ler pelo menos um deles para lhe fazer maior justiça, pois os contos do Frei Pedro podem causar um efeito diferente, e até melhor, em um conjunto mais amplo.

29/11/2019 – CONTOS DE AMOR CUBANOS

Leio mais essa seleta de contos do país do Fidel. Ao contrário do outro livro de contos cubanos que li, que era voltado ao século XX, esse pega escritores oitocentistas também, a partir de Cirilo Villaverde. Os textos daquela século era, naturalmente, românticos, o que vem a calhar com a temática de um livro voltado aos contos de amor. Os primeiros contos do livro, dessa época, não chamaram muito a atenção durante a minha leitura. Há aqueles, como o de Cirilo (“Lola e o periquito”) e o de Tristán de Jesús Medina (“Sunsión”) que terminam bem, mas outros não, como “O dominó negro”, de Manuel de la Cruz. Reli nesse livro “Inocência”, de Miguel de Carrión, história bonita de um paixão meio adolescente entre um jovem caçador e uma moça que encontra nos campos durante o verão. Alfonso Hernández Catá é um escritor de quem já li uns três contos e “Dia de sol” me pareceu um tanto “nelsonrodriguiano”, o que é uma coisa boa, embora eu não tenha gostado tanto assim do conto. Também reli o bom conto “Um flerte esquisito”, de Armando Leyva, que é um daqueles contos que brincam com o sobrenatural, na medida em que se refere a um flerte com pessoa que, depois de descobre, parece nunca ter existido. É um mote muito parecido com de outro conto, “O retrato”, de Arístides Fernández. Depois veio o Gerardo del Valle e o seu interessante “Ela não acreditava em bruxarias”. É interessante porque expõe de modo bem detalhes os cultos africanos em Cuba, em meio a uma disputa de duas mulheres por um homem – e uma, como o título sugere, não acreditava em tais cultos, praticados por toda a sua vizinhança. “A garra”, de Enrique Serpa, de quem já havia lido outro conto, também é nelsonrodriguiano, pois trata de uma mulher que só ficava com o seu marido por conta do sexo, mas tinha um amante, a quem queria entregar todo o resto de si, mas o amante tem ciúme do sexo que o outro recebe. Os dois acabam se separando. Gostei. “Um nome”, de Rubén Martínez Villena, é outro conto de que gostei, talvez aquele que tem a escrita mais fluída até agora. É a história de um flerte, como tantas outras, com a diferença de que a mocinha da história tem uma visão errada sobre o mocinho, pois se trata de um homônimo. “Último ato”, de Pablo de la Torrienta Brau, é o mais curto e até bom, mas pega um mote um tanto batido, a saber, o homem que acha que é traído, vai encontrar a esposa e ela, achando que era o seu pretenso amante, trata de matá-lo, pois era fiel ao marido – e o marido morre sorrindo. “Bunny”, de Luis Amado Blanco, é um conto bem esquisito em que um coelho de pelúcia se interpõe no relacionamento de um casal. Foi o que li até agora.

03/12/2019 – CONTOS DE AMOR CUBANOS 2

Continuando a leitura, encontrei mais alguns escritores que já havia lido no “Contos cubanos do século XX”. O Alejo Carpentier, que havia me deixado uma má impressão na antologia anterior, nessa se saiu um pouco melhor com “Semelhante à noite”, apesar das dificuldades iniciais que tive na leitura. Já o Félix Pita Rodríguez, autor do meu conto favorito da primeira antologia, nessa não se saiu tão bem assim. O seu conto “A mulher ideal” tem uma levada cômica, por vezes até politicamente incorreta, e não filosófica como no lindo “Tobias”. Samuel Feijóo, que havia se saído bem na outra antologia, também apresentou uma boa história agora, com “Alejo García”, a trama de um amor que vai além da própria lepra. Há só um conto de mulher no livro, que é a Dora Alonso com “Sofia e o anjo”, mais um daqueles contos em que o amor acontece por meios sobrenaturais. Tive dificuldades com a leitura de vários contos, como o primeiro de Onelio Jorge Cardoso (“Onde começa a água”; o segundo, “Perfume de Cravina”, me desceu bem), Eliseo Diego, Gustavo Eguren, Juan Leyva Guerra, Jesús Díaz e José Rivero García, tendo inclusive abandonado a leitura de alguns deles, coisa que sempre me pesa fazer. Raúl González de Cascorro ofereceu uma boa peça no triste “Isabel ao vai baile”. Noel Navarro apresenta o mais filosófico conto da antologia em “Os pés na areia”, sobre um quase suicida e a posterior descoberta de uma paixão que, nem por isso, evitou o trágico desfecho. Outro de que gostei foi “Final de dia”, de Eduardo Heras León, texto curto e rápido de se ler, mas no qual se evidenciam os pequenos silêncios e os “não ditos” que fazem uma relação, pelo menos a partir do momento em que se configura um casamento. Há uma série de contos de escritores bastante jovens à época da publicação, alguns com menos de 30 anos, e não foi de todos que gostei, mas achei interessante “Esse conto de Silvia”, de Luis Toledo Sande, e “O homem que veio com a chuva”, de Plácido Hernández Fuentes, embora esse tenha terminado abruptamente. Há ainda alguns outros contos que não se destacaram de nenhuma maneira durante a minha leitura.

03/12/2019 – CONTOS DE AMOR CUBANOS (RESUMO)

Uma seleta interessante de se conhecer. Pega uma boa amostragem da literatura cubana, já a partir de Cirilo Villaverde, nos anos 1800, quando os contos de amor eram, em mais de um sentido, românticos. Vai avançando e chegando a nomes como Miguel de Carrión, Alfonso Hernández Catá, Armando Leyva, Enrique Serpa, Rubén Martínez Villena, Félix Pita Rodríguez, Samuel Feijóo (para citar apenas alguns dos escritores cubanos mais famosos e que eu também apreciei) e então vem uma turma bem recente, gente nascida na década de 1940, alguns com menos de 30 anos na publicação do livro. Os textos versam sobre o amor entre homem e mulher, em diferentes facetas, incluindo alguns cuja trama sugere alguma explicação sobrenatural. Destaque também para o conto de Gerardo del Valle, pois, mais do que a trama amorosa, a história oferece a possibilidade de se vislumbrar a realidade das religiões de matriz africana em Cuba. Devo dizer, contudo, que muitos contos não apenas não caíram no meu agrado como, inclusive, vi-me forçado a abandonar a leitura, mas há alguns momentos que justificam a leitura. Há um outro livro chamado “Contos cubanos do século XX” que, embora, como um todo, não seja uma obra que tenha me impressionado, possui alguns valores individuais melhores que os desta antologia.

04/12/2019 – ROGÉRIO DE FREITAS

Desse português desconhecido por aqui li um conto chamado “Partir, a tarefa acabada”, presente no livro “Antologia do moderno conto português”. É um conto lindo sobre uma mulher às portas da morte e que, deitada em sua cama, faz algumas reflexões ao seu jovem esposo a respeito da vida que viveu, achando que não a havia vivido como tinha que viver. Bem filosófico e sensível, do tipo que me atinge em cheio.

09/12/2019 – ANTOLOGIA DO MODERNO CONTO PORTUGUÊS

Trata-se de uma edição de 1968, organizada e comentada pelo crítico literário Temístocles Linhares, que faz boas apresentações dos autores, embora, em alguns casos, eu tenha achado que ele entregou mais coisas do que deveria do conto que seria lido em seguida. O livro como um todo não me agradou muito, pois encontrei ali vários contos difíceis. Esse livro me fez perceber melhor como é diversa a linguagem de Portugal e do Brasil, pelo menos a coloquial. Muitas expressões da oralidade, além de substantivos, não são de uso comum entre os dois países. Isso se torna especialmente visível nas histórias regionais, ou “de aldeia”, presentes nesse livro. Eu já tenho dificuldade com os contos regionais brasileiros, então você imagine com os portugueses. A leitura travou várias vezes e eu me vi obrigado a seguir sem entender totalmente o sentido daquilo que estava sentido. Esse é o lado negativo, mas tive também prazeres bem marcantes durante a leitura dessa antologia. O primeiro foi justamente com o conto de abertura, já citado. Bem mais para frente, há o conto “Tal e qual o que era”, de David Mourão Ferreira, que também foi um dos destaques. Trata-se de um monólogo de 40 páginas, se bem que divididos em pequenos blocos, que se passa por ocasião do velório de uma mulher. O autor do monólogo era um amigo de infância da morta e a pessoa a quem ele destinava a sua fala era o irmão mais novo dela. Ele reconstrói, em estilo caótico, aspectos da vida da personagem, revelando as coisas ao pouco e como que por acaso, como faríamos, de fato, em uma situação real. A narrativa é muito boa e fluente – a fluência é fundamental, afinal, nesses casos de monólogo. Esse é um tipo de conto que me agrada bastante, ou seja, esses esparramos de um personagem. É mais difícil de fazer do que parece, mas, nesse caso, achei que o autor se saiu muito bem. Também merecem destaque o conto “Retta ou os ciúmes da morte”, de Ilse Losa, que era alemã e vivia e Portugal, e também o conto dela fala de alemães que viviam em Portugal. O viúvo de uma dessas alemãs descobre um outro alemão em Portugal e resolve atirar em cima dela todo o drama pelo qual está passando, por achar que a mulher morta havia lhe traído. Dei-me conta agora que os três contos citados dizem respeito a uma mulher que morreu ou está para morrer, mas é coincidência. Outro belo conto que encontrei no livro é “Cristina”, de Graça Pina de Morais, texto bastante poético sobre um homem casado e os sonhos que tinha (sejam sonhos de fato ou idealizações) com a mulher que dá nome à história. Um conto que chamou a atenção foi “A maior distância”, de Patrícia Joyce, com aspectos regionais também. Fala de uma mulher cujo marido foi para a África fazer fortuna, ou buscando isso. Demorou-se lá muito tempo e, sem planejar, numa aventura repentina, a mulher acabou tendo caso com um viajante que lhe foi ver. Dele engravidou. O marido estava para voltar. O casal já tinha uma filha mais velha, a quem a mãe contou a história, e as duas passaram a orar para que o menino nascesse morto. Não nasceu, e as duas, assim que o viram, não tiveram coragem de fazer nada contra o neném. A filha acaba tendo então a ideia de fazer de conta que o filho era dela. Ela se sacrifica para salvar a mãe, sacrifica inclusive o seu namoro, pois fazer o seu namorado acreditar que o filho realmente era dela. “Pecado”, de Luiz Cajão, tem também uma trama interessante, pois uma mulher, dessas que vivem em aldeias do interior, tinha prática de fazer abortos para as mulheres da região e de repente se vê obrigada a fazer o aborto do seu próprio neto, que teve uma aventura com sua vizinha. Mário Braga com “Espólio intacto” é um momento interessante também. Uma história, em duas camadas, sobre o sujeito que havia herdado um baú do seu avô, abrindo mão inclusive do resto da herança da família, mas sem nunca ter tido coragem de abrir para ver o que estava lá dentro, pois, sendo o que fosse, representava a sua infância. Em meio a memórias de tudo o que viveu antes e após a morte dos avós, há o drama do seu relacionamento amoroso, que está em vias de terminar por ele não ter coragem de assumir compromisso. Foram esses os contos que mais se destacaram positivamente na minha leitura.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 09/12/2019
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