Diário das minhas leituras/42

01/10/2019 – RAUL POMPEIA

Li “O ateneu” em 2017. É o tipo de livro que, antes de ler, você acha que vai ser uma leitura difícil, e quando termina você tem certeza. "Imagético" é um adjetivo que cai bem ao estilo da narrativa.

05/10/2019 – MARGARET ATWOOD

Atwood é uma escritora necessária de nosso tempo (quem sabe ganhe o Nobel na semana que vem). É uma coisa boa que muita gente que lê "O conto da aia" chegue também até esse "Dicas da imensidão". São dez histórias narradas a partir da perspectiva feminina, em uma sociedade na qual as mulheres já saíram de casa para ganhar o mundo. Suas personagens geralmente têm carreiras profissionais de aparente sucesso. O que está bem longe de significar felicidade, pois elas também se veem às voltas com dramas existenciais, amorosos e, naturalmente, aqueles decorrentes do machismo. Os casos amorosos narrados parecem fiéis à maneira contemporânea pelo qual os relacionamentos se dão, na qual o sexo e mesmo o adultério já são encarados com maior naturalidade, mas a minha impressão geral, a partir do vazio que o "amor" representa nessas histórias, mesmo nos momentos mais "aventurosos", é de que a solidão não é tão ruim assim. Destaco o conto "Peso", que eu já conhecia e é o meu favorito, tendo o feminicídio como mote (ou seja, atualíssimo). "Tios" também me chamou bastante a atenção, seja pela forma como a criação determina o comportamento na vida adulta ou pela lamentável inveja masculina diante do sucesso da mulher. O conto que abre o livro, "Lixo verdadeiro", foi outro dos meus favoritos, pois ali se discute muitas questões relacionadas ao comportamento dos gêneros ainda na adolescência, o que, é claro, repercute na vida adulta. "Morte por paisagem" também foi um bom momento para mim, e há bons momentos em todos os contos, embora alguns não tenham se destacado muito para mim. Atwood escreve de maneira fácil, muitas vezes as tramas não são tão complexas, mas ela prende a atenção. Todos os contos são divididos em alguns blocos de texto, demarcando uma pausa, uma mudança de ritmo ou de cena, o que acaba contribuindo também para a fluência. Ao término do último conto, sugestivamente chamado de "Quarta-feira inútil", reforçou-se em mim a ideia de vazio existencial a partir dos relacionamentos contemporâneos.

07/10/2019 – A GERAÇÃO DA TERRA (CONTOS ISRAELENSES)

Essa antologia de 1983 abrange escritores judeus das décadas anteriores que já viviam em Israel. Ela começa com “A vida esplêndida de Clara Chiato”, de Yoram Kaniuk, que acompanha a sofrida trajetória de uma mulher judia, da infância até à morte. O que me marcou nesse conto foi a poesia da linguagem, dita de repente, como quem não quer nada, em frases como “Ela sabia que Deus é algo de triste, como uma borboleta de pés pesados que não quer ser pedra ou árvore” e, logo no primeiro parágrafo, “Sentiu as pernas gelarem e lembrou-se que lhe haviam dito que os mortos têm pernas frias, por isso apalpou o coração para verificar se ainda estava viva”. Estão no conto, também, os horrores do Nazismo. O próximo conto é “Concurso de natação”, de Binyamin Tamus, que achei bem interessante, pois apresenta o contato entre o mundo judeu e árabe em Israel, sendo que uma prosaica competição entre membros das duas etnias é meio que uma metáfora para um embate maior entre elas, violento e bélico, o que também é exposto. “Cinzentos como um fardo”, de Ygal Mossinzon, é o conto que se segue, em que se percebe aspectos da luta contra os britânicos, somada a certos conflitos pessoais dela decorrentes. E depois vem o que até agora é o meu conto favorito, “A mão do destino”, de Nathan Schaham, que trata dos esforços de um homem, membro de uma “kibutz”, para garantir o melhor tratamente possível à sua namorada que havia sofrido com o estouro de uma mina e corria risco, primeiro, de perder a vida, e depois de perder a mão. É uma cena memorável a do homem que precisa urgentemente achar doadores de sangue e que encontra, de manhãzinha, em um grupo de mulheres que esperava abrir o verdureiro. Elas se propõem a ir até o hospital e fazer a doação, enquanto o homem, já extenuado, fica guardando o lugar delas na fila. E depois há toda a luta desse homem contra o diagnóstico do médico que vaticinava a necessidade de se amputar uma das mãos da mulher, a sua corrida por buscar um especialista, uma segunda opinião, em meio a seus conflitos pessoais sobre se valia a pena mesmo fazer isso ou se deveria aceitar aquilo que o médico lhe dizia. O seu esforço, contudo, não é em vão e ele dá realmente uma “mão ao destino”. Lindo.

09/10/2019 - A GERAÇÃO DA TERRA (CONTOS ISRAELENSES) 2

Estou impressionado com a qualidade dos contos judeus, sejam eles feitos em ídiche ou em hebraico, que é o caso dessa antologia. Não vejo nenhum motivo para que essa literatura não seja tão celebrada quanto outras mais famosas. O próximo conto que li foi “O retorno”, de Schamai Golan, uma belíssima história sobre a volta para casa de um homem mutilado durante a guerra, com todas as dificuldades da sua nova condição para se adaptar e atender às expectativas de ser um homem e ter uma família. Drama bastante realista e com incursões psicológicas perfeitamente verossímeis para alguém em tais condições. Depois vem Ben Tzion Tomer, com “O caminho de sal”, que, pelo que entendi, é excerto de algum texto maior dele, não constituindo um conto, portanto. Realmente não gosto quando fazem isso, quando tiram um trecho de outra obra e tentam transformar em conto. A própria análise do texto é prejudicada. Depois, vem Aharon Megued com “O nome”, que também reputo como um dos melhores contos do livro. Nele se observa o conflito de gerações entre os judeus da diáspora e aqueles já nascidos em Israel. Os primeiros tentavam ainda manter viva a memória e a trajetória que os levaram até ali, ao passo que os outros não tinham a mesma preocupação, buscando uma independência, considerando que os tempos eram outros. De maneira mais específica, o conto trata do desejo de um avô de que o filho da sua neta tivesse certo nome que remetia à trajetória da própria família, enquanto neta e genro sequer cogitavam tal hipótese. O avô sempre se lamentava por um neto falecido ainda criança durante a guerra, vivia rememorando aquela perda e, por um momento, pensou substituí-la a partir do nascimento do bisneto, no qual colocaria todas as expectativas que os nazistas haviam frustrado anteriormente. A resistência dos parentes, no entanto, fez com que o avô voltasse a se concentrar naquela perda durante a guerra, e de tal forma que sequer era capaz de considerar que a sua neta tivesse algum filho. O conto termina em tom extremamente triste. Em seguida, vem “A cavalo, no sábado”, de Mosché Schamir, que é interessante por mostrar um judeu “rebelde”, pois, embora tido como sábio, havia se afastado da sua comunidade e, mesmo ao voltar, tem o forte desejo de chocar os seus companheiros, a começar pelo fato de andar a cavalo no sábado, coisa que não era permitida a um judeu. Ele tem um embate teológico interessante com um dos seus antigos seguidores, dizendo coisas como: “Meus olhos viram que Ele deu ao Seu povo leis que o universo não respeita. Meus olhos presenciaram que Ele exigiu de seus filhos certos atos que nem Ele próprio executa. Meus olhos presenciaram que exigiu caridade do ser humano que Ele não lhes retribui. Meus olhos presenciaram os dez mártires do Império”. É uma tensão bem interessante, mas fiquei com a impressão de que, ao final de tudo, a mensagem é um tanto proselitista, na medida em que se expõe o quanto havia de “ruim” no comportamento desse sujeito, sobretudo em face da serenidade dos judeus que eram fiéis.

11/10/2019 – PETER HANDKE

Ontem saíram dois nobeis de literatura e um deles eu já li. É uma coisa realmente extraordinária, pois foi a primeira vez que eu li um Nobel antes de ele ser nobel. Trata-se do Peter Handke, austríaco, de quem, na verdade, li apenas um livro, “A tarde de um escritor”, que me lembrou muito o Thomas Mann, seja pela linguagem ou pelo conteúdo. Em verdade, confesso que o livro não me agradou muito. A outra vencedora do Nobel foi Olga Tokarczuk. Esse eu nunca passei nem perto de ler e só soube que existia agora.

11/10/2019 – S. IZEHAR

Alguns trechos desse autor israelense em seu conto “Efraim volta para a alfafa”:

"Veja você, eu mesmo, e também os outros, todos nós, diga: será que aquilo que somos é porque somos assim de verdade? Será que é isso que devemos ser, será que é isso o nosso verdadeiro ser, que estava dentro de nós como um broto no seio da folha? Quero dizer, será que não podia ser diferente? Mas isso não é razoável, ou será que é? Pois tudo veio a acontecer assim, à toa, com uma precariedade sem sentido, casualmente! Apenas casualidade. É uma casualidade que eu esteja aqui e que eu seja assim, é uma casualidade que eu não esteja lá, em outro lugar, e que eu não seja diferente do que sou... Casualidade! E nós a procurarmos uma lógica e uma lei... o imperativo da realidade... você compreende?"

"Por que não deveríamos ter a capacidade de escolher para nós aquilo de que gostamos, aquilo que nos faz falta dentre as coisas que se nos apresentam, repelindo com a força de nossa vontade sem aceitação, sem recuo, sem concessões ou rendição, aquilo que não nos agrada? Você está ouvindo? Pelo menos, não deveríamos cantar louvores à impotência chamando-a de humildade, modéstia ou comportamento exemplar... Não! Acaso cada homem não tem a sua estatura, cada criatura a sua fisionomia, a sua tristeza, a sua maneira de ser única, solitária, ímpar, e, portanto, um só caminho estreito e reduzido, que comporta apenas os seus passos, caminho que começa e termina com a sua existência, e é um caminho exclusivo, a única verdade, fora da qual tudo será concessão, mentira, conciliação e rejeição?".

“Era verdade que as pessoas mais honestas não confessavam o amor a si próprias: chamavam a isso de “egoísmo”, mesquinharia, estreiteza e assim por diante. Seria vergonhoso e até uma ofensa suspeitar de suas atitudes, mas isso não negava o fato de que a ponta mais dolorida de suas unhas lhes era mais cara do que a alma dos seus semelhantes e que uma suspeita de calvície era capaz de lhes tornar odioso o mundo inteiro”.

“E quando tudo está fechado dos quatro lados, para onde explodirão as saudades?”.

“E há tantas palavras a dizer, já prontas há muito tempo dentro de você, que nunca serão ditas, pois há vida e há calor e fogo e sangue e dor no homem que vê e silencia, qu quer e se afasta, que pode e desiste. Não por impotência, mas mas por causa do temor de se prender a expressões retóricas, que devem ou ser escritas em álbuns delicados ou obrigadas a permanecer nos limites das exclamações de sublime e grandiosa heroicidade”.

“Uma alma contida que aguarda o sinal para ser levada por uma torrente infinita”.

11/10/2019 - A GERAÇÃO DA TERRA (CONTOS ISRAELENSES) 3

Por fim, li os três últimos contos dessa extraordinária antologia. “À margem do Mar Morto”, de Schlomo Nitzan, é outra peça impressionante. É um texto dolorido, de um simbolismo filosófico que é facilmente apreensível e causa uma dor profunda no peito, por trazer em si a mensagem do fracasso, a mensagem das expectativas que são frustradas e, como reação, uma tentativa de conformismo que não chega a se realizar de todo, porque a consciência do sonho nunca vai embora, apesar da inevitabilidade da derrota e da sua permanência. Tudo isso é personificado em um personagem que se encontra em uma praia, em outro que poderia ser ele dali a dois anos e ainda a um terceiro, o garçom que os serve, o que tivera o mais alto cargo entre eles e o que havia sofrido a maior derrota, mas no fundo eram todos a mesma e única pessoa e, quem sabe, todos nós. De uma beleza incrível! Em seguida, vem Hanov Bartov que fez em “A história do Jardim do Éden” uma releitura da tradicional história bíblica, o que bem evidencia que as histórias não ficam restritas aos livros onde as encerramos e que, por mais que queremos fixá-las de um determinado jeito, como se único fosse, ela sempre se rompe e irá gerar desdobramentos que, por si só, constituirão novas histórias, assim para sempre, ou por tempo indeterminado. Há algumas aspectos da vida em sociedade em Israel também, já no século XX, pois a história é contada por um personagem já naquela época. O livro termina com o arrebator “Efraim volta para a alfafa”, de S. Izehar. Vou confessar que, principalmente no início, não é um conto dos mais fáceis, pois parece que há muita descrição para pouca ação, mas, conforme a leitura avança, percebe-se verdadeiros arroubos existenciais como os que citei na nota anterior, uma enxurrada de filosofias e pensamentos inquietantes à qual se lê com sede e avidez, porque são realmente muito, muito bons. E ainda um aspecto bem interessante da cultura israelense da época é posto à prova, pois o conto trata do embate um judeu e a sua “kibutz”, ou seja, uma pequena comunidade autônoma de Israel, a qual pertencia. Ali se vê não apenas os costumes e as práticas dos judeus para viver coletivamente no país, mas ainda a questão da individualidade em relação a um grupo com interesses comuns. Efraim, o personagem do conto, queria parar de trabalhar com alfafa na kibutz e ir para outro setor, pois isso representaria algum tipo de mudança para ele, ainda que simbólica, mas o seu desejo causa verdadeiro alvorço no seio da comunidade e é muito interessante ver de que forma os seus membros lidaram com a questão, com todas as argumentações que utilizaram para defender seus pontos de vista. No meio disso tudo, muitas reflexões, muitas introspeções, muita análise, muita filosofia e uma capacidade nitidamente bastante aguçada de observação do escritor, que percebe as motivações e os detalhes do comportamento humano (e não apenas judeu) e os expõe de uma forma que é difícil ler e não dizer “é isso aí mesmo, é do jeitinho que ele tá falando”. É um conto que se lê com muito mais vagar do que os outros do livro e a impressão que fica é que é, sobretudo, um conto para se reler, e se reler, a fim de aproveitar melhor tudo o que ele disse, porque certamente há tesouros que escapam na primeira leitura que se faz. Nem as eventuais dificuldades da narrativa arranham a força e o vigor desse conto.

11/10/2019 – A GERAÇÃO DA TERRA (RESUMO)

Esse livro é uma veemente prova da força e do vigor da literatura judaica. À experiência que já tive com os contos ídiche se soma agora a dos contos hebraicos, e tudo concorre para a conclusão de que não há na literatura judaica nada a se dever a qualquer outra. Como os contos ídiches, também os hebraicos são uma forma de aprendizado sobre essa cultura (que não é a minha, pois não sou judeu). É interessante que não existe proselitismo religioso – no máximo, há um conto cuja “moral” parece reforçar a mensagem do judaísmo para um judeu recalcitrante, mas é também este o conto que apresenta as maiores dúvidas a respeito de Deus e do seu interesse pela humanidade. Os contos judeus são muito mais existencialistas do que se imaginaria para os seguidores de alguma religião. Eles vão realmente fundo nas questões, e o que se lê em certos trechos de S. Izehar é, sem exagero, digno de um Dostoievski. Vivendo em uma área tão conflituosa, há também aqui contos que tratam de conflitos bélicos, mas nunca como uma defesa do judaísmo em face das outras culturas. São esmiuçados aspectos bem mais humanos dos confrontos, com destaque para “O retorno”, de Schamai Golan, que fala sobre a dificuldade de adaptação à própria família de um homem mutilado, e “A mão do destino”, de Natan Schaham, comovente drama de um homem para garantir que a sua parceira sobreviva e não perca a mão após uma mina explodir. A questão da singularidade do judeu em Israel, em comparação com aqueles da diáspora, é exposta de uma forma muito linda em “O nome”, de Aharon Megued, no qual se percebe o conflito geracional entre realidades diversas do judaísmo. “Efraim volta para a alfafa”, de S. Izehar, é uma impressionante obra que revela, de um lado, aspectos do funcionamento de uma “kibutz”, pequenas comunidades autônomas israelenses, mas de outro a luta do invidíduo em face da sociedade e do coletivo, e tudo permeado por reflexões e por análises a um só tempo bela e profundas. Também existencial é “À margem do Mar Morto”, de Schlomo Nitzan, em que se fala de forma bastante dolorida da inevitabilidade do fracasso. Esses momentos são os que mais me chamaram a atenção no livro. Tenho a impressão de que descobri na literatura judaica um tesouro, escondido do grande público, mas que a mim muito me agradará escavocá-lo mais.

milkau
Enviado por milkau em 11/10/2019
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