Diário das minhas leituras/37
15/08/2019 – ARTUR DA TÁVOLA
“Escrever é teimar. É saber perder para textos. É acertar muito pouco e mesmo assim continuar. É não gostar e se assustar quando gostam. É temer idealizações. É não ceder ao impulso de onipotência frente à folha branca, na qual se imprime o que se quer”.
16/08/2019 – CONTOS SOVIÉTICOS
Tive curiosidade de saber um pouco mais sobre os contistas russos no tempo da União Soviética. Temia que a política e o panfletarismo se imiscuíssem nos textos mais do que seria conveniente, mas o fato é que é não há nada que possa ser classificado como mera propaganda do partido. Talvez o mais político dos contos seja “O polvo”, de Fédor Gladkov, mas este é também um dos melhores do livro, ao tratar de uma trama de intrigas no seio de uma administração comunista. Em relação à qualidade dos contos, claro está o abismo que existe entre os contistas russos do século XX e os do século XIX. Há bons momentos, é certo. A questão da fome e da miséria é abordada repetidas vezes, às vezes de forma bastante tenra e sensível, como o belo “O nascimento do escravo”, de Sérgio Semionov, ou de forma chocante, como em “Fome”, de Alexandre Neverov. Questões sociais também permeiam “Irmãs”, de Alexandra Kolontai. “Trevas”, de Panteleimon Romanov, evidencia que os injustiçados podem se aferrar ao egoísmo quando finalmente conseguem o que querem. Há o humorismo do Avertchenko, um dos poucos russos do livro que eu já havia lido, com “A odisseia de uma vaca”. Boris Pilniak cria uma notável cena em “Mãos sujas de terras”, que tenho a impressão de já ter lido, sobre a repentina chegada de um marido que a esposa, agora casada com outro, acreditava que havia morrido numa guerra. Uma inusitada versão do detetive inglês aparece em “O fim de Sherlock Holmes”, de A. Bukhov. Foram esses os contos que mais se sobressaíram na minha leitura, mas não vou negar que os soviéticos desse livro me agradaram menos que os ucranianos, os búlgaros, os húngaros e os romenos do mesmo período.
18/08/2019 – O CONTO FEMININO
Comecei a ler essa antologia editada pela Civilização Brasileira em 1959, feita apenas de contos escritos por mulheres brasileiras. Estão lá nomes do cânone nacional, como Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, outras eventualmente conhecidas, como Júlia Lopes de Almeida e Maria José Dupré, mas a maior parte das escritoras é, hoje, completamente desconhecida. Como muito me agrada o “resgate” de grandes escritores do passado, naturalmente me interessei e peguei o livro. Ele é organizado em ordem alfabética. Começa com “Dois mascarados”, de Adalgisa Nery (1905-1980), uma construção muito bonita a respeito de um encontro um tanto existencialista em um banco de praça durante festejos de Carnaval. Depois vem Adelina Lopes Vieira (1850-1923), que soube então ser irmã da Júlia Lopes de Almeida, mas nascida ainda em Portugal, com “A vaidade!... A vaidade!...”, também uma peça bonita em que uma idosa de um asilo conta sobre o seu passado de glória. Na sequência está Cacy Cordovil (1911-2000), e essa é realmente desconhecida, pois não tem sequer um verbete para ela na Wikipedia. Aparentemente, afastou-se da vida artística. Mas essa Cacy participa com um belo conto de nome “Uma carta”, em que a personagem, depois de encontrar e conversar com uma pobre mulher negra, ficou sabendo da história dela e da saudade que ela sentia do seu antigo patrão e decidiu mandar, em nome da negra, uma carta a esse homem pedindo notícias. Na carta, a personagem expõe a história e os dramas da mulher naquela fazenda, mas, por fim, decide não mandar essa carta, e sim outra, muito mais sintética. A próxima escritora é Carmen Dolores (1852-1910), pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo, que comparece com “Um drama na roça”, história interessante e que tem o sabor da literatura brasileira romântica do final dos anos 1800. É a história de uma mulher que, depois de casar e ir para a Europa, vem passar um tempo na casa da família no interior e ali começa com a “coqueteria” que a faz roubar os noivos de suas duas irmãs, embora não tenha escapado da vingança de uma delas. Logo depois da Carmen, vem a filha dela, Chrysanthème (1870-1948), pseudônimo de Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcellos, autora de “As saudades”. Pelo que vi, Chrysanthème é uma figura reconhecida por parte do movimento feminista pela sua atuação, na imprensa, pelo fim das desigualdades de gênero, mas a introdução do seu conto não expõe as coisas dessa maneira, falando que as suas heroínas praticavam uma espécie de “donjuanismo feminino”. O conto “As saudades”, porém, passa ao largo das questões de gênero, sendo um texto extremamente lírico e poético que, em essência, é sobre a morte e a dor dos pais que ficam, em meio a uma simbologia das flores. Depois vem a conhecidíssima Clarice Lispector, com “Laços de família”, que eu ainda não havia lido. Clarice é realmente ótima para transmitir pensamentos e emoções aos personagens, em meio a suas inquietações. Nesse caso, são apresentadas cenas bastante tocantes que envolvem as relações de parentesco e de afetividade. Foram as autoras que ali até agora.
19/08/2019 – O CONTO FEMININO 2
Continuando a leitura, cheguei ao conto “Amores mortos”, de Corina Coaracy (1858-1892), uma escritora brasileira nascida nos Estados Unidos. O conto escolhido não me pareceu tão característico da época em que foi escrito, apesar de ser, também, um texto romântico, mas poderia facilmente passar por conto feito no século seguinte. É o drama de um homem que, esquecido da vida após perder a amante, olha pela janela da pensão e começa a se interessar por uma mulher feia e cega que aparece na janela do prédio em frente, até o momento em que esse prédio pega fogo. Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982) é um pouco mais conhecida (mas não tanto) e aparece na sequência com “A moralista”, história de uma mãe que se torna conselheira, praticamente uma “padra”, de determinada localidade, ajudando e colocando as pessoas no bom caminho, até que começa a ter problemas com o jovem que emprega em sua casa. Elsie Lessa (1914-2000), já minha conhecida por causa de suas crônicas, comparece com “Enfermeira de 3ª”, em que apresenta o sensível quadro de uma enfermeira novava vivendo os dramas humanos que são característicos da rotina de um hospital. Depois vem Emi Bulhões Carvalho Fonseca, que hoje em dia é tão pouco conhecida que não consegui sequer descobrir as duas datas de nascimento e morte. Mas o conto dela, “Ele e Napoleão”, foi um dos que mais gostei até agora. É a história de um sujeito que orbitava pessoas importantes, ministros e chefes, e gostava de ostentar uma proximidade com eles que, em verdade, não tinha, como, aliás, muito pouco tinha conseguido arrumar para si em consequência dos tais contatos. Desejando coisas maiores, sonhando com uma viagem a Paris, recebe uma herança e viaja para lá. Apesar de certas decepções, em pouco tempo se sente francês, mas o dinheiro começa a acabar e ele tem que voltar. Antes, porém, tem uma espécie de vertigem e toma uma atitude que fará com que ele enfiim se distinga: em um museu, deita-se na cama de Napoleão. A próxima é a Eneida (1904-1971), de quem eu já conheço um pouco e sei dos seus valores como cronista. “Clocó entre oceanos, mares e rios” é outro dos melhores momentos do livro até agora. Mas tem um “porém”: não se trata de conto, mas de crônica, ainda que uma crônica “estendida”, maior do que aquela que, hoje, se admite em veículos de comunicação. Trata-se da terna história da autora (e não há no texto nada a desmentir que a personagem da história seja a própria Eneida, ao contrário) e de uma empregada sua, a Clócó, apelido de Cláudia, com as histórias em comuns entre as duas, a devoção e o afeto mútuo, embora só expressado para valer no momento da despedida. A autora evoca a sua Clócó precisamente quando está na invejada Paris.
20/08/2019 – O CONTO FEMININO 3
Fernanda Lopes de Almeida (1920-) aparece no livro com o conto “Luciana ciclotímica”, que é um monólogo que expressa as diferenças de temperamento entre duas pessoas que se relacionavam. Essa Fernanda é neta da Júlia Lopes de Almeida, embora eu esteja achando estranho que ela seja a mesma assim chamada que é autora conhecida de livros infantis e que ainda vive. Florence Bernard, escritora cujas idades de nascimento e óbito não descobri, aparece com “O areal”, um drama impressionista que não caiu exatamente no meu gosto. Helena Silveira (1911-1984) surge com um conto que eu já havia lido e chamado de belo, “Aida Arouche Magnocavallo”, sobre uma menina que “implica” com o seu sobrenome italiano, pois isso a impede de fazer parte da “nobreza” paulista quatrocentona. Heloneida Studat (1932-2007) vem com “A aula de geografia”, sobre um professor particular apaixonado pela irmã do seu pupilo, mas o seu ardor romântico termina no momento que percebe o sadismo da moça ao castigar o irmão, por ordem da mãe, devido a uma resposta que ele não sabia. Iracema Guimarães Vilela é outra escritora do livro de quem me faltam os dados de nascimento e óbito, mesmo considerando o seu pseudônimo masculino, Abel Juruá. O conto dela é “A primeira consulta”, que, se não fosse escrito por uma mulher, eu provavelmente qualificaria de machista, pois ele não é nem um pouco favorável à imagem das mulheres, ainda que sob o olhar de um médico que havia tido uma péssima experiência com uma delas, sua ex-amada, que tentou envenenar às escondidas o seu marido, primeiro cliente do médico. Vem então a enorme Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que, felizmente, está ficando cada vez mais conhecida. Ela apresenta “Cena de comédia”, que tem lá, de fato, os seus momentos cômicos, mas não deixa de ter também o seu viés psicológico, a partir da relação de dois amigos e do interesse de um deles em alertar o outro sobre o fato de a mulher dele estar andando sozinha demais. O último conto que li no dia de hoje foi também o melhor do livro até o momento, isso, é claro, no meu gosto pessoal. Trata-se de Lia Correa Dutra (1908-1989), outra esquecidíssima escritora, mas que, com um admirável e envolvente estilo, produziu “A finada D. Aninhas”, história sobre um menino um tanto mimado que vive na companhia de apenas mulheres e que, subitamente, vive pela primeira vez a experiência da morte, na figura de sua avó. É escrito em primeira pessoa pelo menino, o “Henrique”, rememorando os fatos daquela época, com muita graça e, assim me pareceu, bastante verossimilhança com as ideias, pensamentos e ações infantis em um momento de drama familiar como aquele. Aparecerá na minha lista de melhores contos do ano.
22/08/2019 – O CONTO FEMININO 4
Ah, essa Lygia Fagundes Telles é realmente ótima. Ela é uma das poucas bem conhecidas escritoras que faz parte dessa antologia voltada a “O Conto Feminino” e, no conto escolhido, mostra mesmo por que é que é um nome tão celebrado. “A confissão de Leontina” é uma história admirável, com tudo aquilo que a gente acha que uma história boa tem que ter mesmo, e ainda algo que é da minha particular afeição, ou seja, o enfoque em personagens desafortunados. Gostei tanto que acho que vou pegar emprestado um livro só dele até o final do ano, já que este é o segundo conto dela que apreciei bastante. Há 15 anos, eu li, para o vestibular, “Seminário dos ratos”, mas a lembrança que tenho é que achei tudo meio estranho e difícil. Bem, eu era ainda adolescente. Vejamos o que outro livro só dele me reserva. Depos do conto dela, vem a Lúcia Benedetti (1914-1998) com “Chimango”. Esse conto tem as suas semelhanças com o que chamei de “crônica grande” da Eneida. O da Lúcia é efetivamente um conto, mas também trata de uma criada/empregada que conquista a afeição de alguém na casa, só que nesse caso os personagens são ainda crianças. Depois há outra Lúcia, a Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), que faleceria ao final do ano em que essa coletânea foi publicada. Ao que parece ela não costava escrever contos, mas fez esse “Apólogo”, que a introdução chama de machadiano, na medida em que dá voz a objetos inanimados, que, no caso, são um oratório e um sofá. Maria Eugênia Celso (1886-1963) marca presença com “Orgulho ou covardia”, talvez o conto de temática mais romântica até agora, pois diz respeito a uma conversa entre duas mulheres na qual uma delas rememora o amor que perdeu, ou que não chegou a tomar posse, na juventude. Na sequência está a Maria José Dupré, eternamente lembrada por “Éramos seis”, que eu ainda não li. O seu conto “Nobreza” foi, na verdade, a primeira coisa que li dela. Achei muito bem escrito, um conto singular, sobre uma mulher que, ao ver uma carta enviada ao seu marido, que viajava, por parte de uma ex, que lhe pedia dinheiro para uma operação, resolve tirar das suas próprias economias um valor que julgava suficiente, enviando-a então à ex do seu marido. Nisso se constitui a “nobreza” que deu o nome do título. Achei bem bacana, embora receie que o fator “moral da história” possa prejudicar uma leitura em sequência de textos seus – mas isso é só uma impressão de quem só leu esse conto dela.