"Bestiário" de Julio Cortázar: o absurdo alinhado com uma atmosfera de mistério/estranheza, em narrativas fascinantes

"(...) Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não acredite que por deslealdade, mas naturalmente a gente não vai ficar explicando a todos que, de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isso sempre me tem sucedido estando só, escondia o fato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure." (trecho do conto "Carta a uma senhorita de Paris")

Aquele momento em que você lê algo tão estranho que precisa reler o trecho para ter certeza daquilo que foi realmente lido. Tal situação ocorre frequentemente durante a leitura do livro "Bestiário" do argentino Julio Cortázar. Trata-se do primeiro livro de contos do escritor, lançado no início da década de 50, e que trazem uma boa amostra do Realismo Fantástico, gênero que encontrou na América Latina terreno fértil, nas linhas de Cortázar, Gabo, Rubião, Rulfo, dentre outros.

A obra está dividida em sete contos e, o que se percebe na bela escrita de Cortázar, além do fascinante absurdo, próprio do gênero, é uma boa dose de mistério, que instiga o leitor a investigar possíveis mensagens/interpretações nas entrelinhas. Cada conto, por si só, abriria um amplo debate, permitindo todo tipo de análises interpretativas. Por vezes, há na narrativa o surgimento de um acontecimento que quebra a normalidade do cotidiano. Em outros casos, o próprio cotidiano e a própria atmosfera são povoados pelo incomum.

Em "Casa tomada", conto que abre o livro, por exemplo, temos um casal de irmãos que vivem sozinhos num casarão que, de uma hora para a outra, tem metade de suas instalações tomadas por um invasor desconhecido, levando o casal a se isolar, gradualmente, nos cômodos que ainda sobraram. Aqui, o incomum poderia servir como metáfora para o comodismo, para a passividade diante de um agressor. Digo "poderia" pois nunca saberemos ao certo. Tal qual Machado de Assis que, em "Dom Casmurro", não oferece a chave para compreensão do principal ponto de seu romance, deixando pistas na narrativa e ornamentando com descrições do ambiente e do cotidiano, o mesmo o faz Cortázar. A construção da ambientação e a descrição da rotina dos dois personagens que moram na casa, tomam a maior parte do conto que, a partir da "invasão", segue num foco totalmente diferente. Há pistas soltas deixadas mas que, por si só, não suficientes para sanar o que de fato aconteceu. O ponto alto não está na conclusão, mas na busca e na construção da narrativa e dos personagens, exatamente como ocorre na obra machadiana.

Se Cortázar e Machado são parecidos nesse foco inusitado, o que os diferencia é o óbvio tratamento do racional diante do elemento fantástico. Inexistente em Machado, o absurdo, quando surge no conto de Cortázar, interrompe a leitura racional que fazíamos da história e, essa ausência proposital de explicações lógicas, causa incômodo. Um incômodo que fascina, instigando à investigação mas que, ao contrário de um Edgar Allan Poe, não apresenta uma resposta única. A interpretação de cada conto é múltipla, pessoal.

Em "Carta a uma senhorita de Paris", o protagonista, por meio de uma correspondência, narra à dona da casa onde ele está instalado sua estranha condição de saúde, na qual ele vomita coelhinhos (!) e o que isso acarreta para ele e o local onde mora. Aqui temos um desfecho onde a interpretação é possível, que requer releituras para ficar mais "evidente". Quanto ao elemento absurdo, o mesmo ar de mistério/estranheza se repete...

Em "Ônibus", a narrativa se aproxima de um thriller psicológico quando a protagonista, que está em um ônibus, é fixamente encarada pelos demais passageiros, todos carregando flores...

A atmosfera de mistério aparece em outros contos do livro: "Distante", "Ônibus", "Cefaleia", "Cirse", "As portas do céu" e "Bestiário", que dá nome ao livro e é a história mais longa. Falar de cada um dos contos poderia trazer possíveis spoilers, que estragariam a experiência da leitura. Contudo, como dito, além da estranheza, todos os contos trazem o absurdo como elemento motor, com uma pequena dose de terror aparecendo em momentos pontuais, numa atmosfera por vezes onírica.

Adentrar nos mistérios da narrativa de Cortázar é compreender o porquê do Realismo Fantástico produzido na América Latina ser tão fascinante. É conhecer o poder que a Literatura tem de instigar e enriquecer nossas capacidades interpretativas. É o prazer literário por definição.

(CORTÁZAR, Julio: tradução de Remy Gorga Filho. Bestiário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, 149 páginas)

P.S.: Resenha escrita em janeiro de 2019.

Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 19/05/2019
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