Diário das minhas leituras/24

01/03/2019 – SÉRGIO PORTO

Ainda em 1954, o cronista Sérgio Porto saiu-se com essa maravilha:

“Se é verdade o que dizem os psicólogos, que em cada um de nós há um pouco do espírito de aventura, aconselho aos que, como eu, não podem caçar leões na Africa, disputar regatas nas Bermudas, galgar os Andes ou saçaricar em Punta del Este, o recurso do lotação. É lindo. Desde o momento em que a gente entra até a hora de pagar os cinco cruzeiros pela viagem, é tudo uma aflita expectativa, com suspenses que fariam inveja ao próprio Hitchcock; fininhos que dariam arrepios no mais audacioso dos toureiros, e de outros pormenores que ajudam a aumentar a desconfiança de que nunca há de se chegar ao destino, coisa que às vezes acontece, apesar dos pesares".

03/03/2019 – CONTO PÁRIA

Li um conto indiano sensacional chamado “A história dos quatro brâmanes loucos”. Trata-se de uma sátira divertidíssima que era contada pelos “párias” indianos, isto é, a mais baixa das castas locais, sujeita a humilhações e tratamentos dos mais degradantes. Mas essa delícia de conto de certa forma os vinga perante a história. É a história de quatro brâmanes que são cumprimentados com reverência por um soldado e cada um deles acha que foi ele o merecedor do cumprimento, e não o outro. Eles entram em acalorada discussão e acabam decidindo ir atrás do soldado para que ele esclarecesse quem ele havia realmente cumprimentado. O soldado nota que aqueles sujeitos não batiam muito bem da cachola e por isso decide se divertir com eles, dizendo que cumprimentou o mais louco deles. Os quatro brâmanes passam então a reivindicar para si o título de mais louco, e a situação chega a tal ponto que eles levam a questão ao tribunal. O juiz também estava interessado em se divertir com aqueles brâmanes e pede que cada um deles conte um episódio para justificar a própria loucura e, assim, ser considerado como o real destinatário do cumprimento do soldado. Cada um deles conta uma história das mais hilárias, não era possível dizer qual era o mais louco. Por fim, decide-se que todos mereceram o cumprimento.

03/03/2019 – CONTO CHINÊS E WASHINGTON IRVING

Washington Irving se inspirou em antigas lendas germânicas para criar a história “Rip van Winkle”, isto é, o sujeito que, sob efeito de magia, dorme durante 20 anos e encontra um mundo todo mudado. Mas há variações de histórias como essa em outras culturas. “A festa das lanternas” é um antigo conto chinês que tem enredo muito parecido. Um sujeito entra numa caverna, encontra dois velhos jogando xadrez e, depois de comer o mesmo manjar que eles, descobre que a “meia hora” que ele achava que estava ali dentro correspondia a muitos anos no lado de fora. De fato, ele sai da caverna e descobre que mais de um século já havia se passado. Tem então o mesmo estranhamento e o mesmo desespero de Rip van Winkle. Volta à caverna dos homens jogando xadrez, pede uma solução para o seu problema. Oferecem a ele a própria imortalidade, mas o homem não quer, quer voltar ao dia em que entrou na caverna. Então dão a ele uma receita de coisas que ele tinha que conseguir e, depois de muito esforço, ele efetivamente consegue voltar à sua época e chega em casa normalmente, sem contar nada aos seus familiares. E então vai participar da procissão da “festa das lanternas”, como estava programado para aquele dia.

03/03/2019 – MARAVILHAS DO CONTO POPULAR

Deixei para ler esse exemplar da coleção “Maravilhas do Conto” mais para o fim, por achar que não seria dos mais agradáveis, mas eu estava redondamente enganado. São lendas, mitos, folclores variados, de diversos países, histórias transmitidas oralmente por incontáveis gerações e que são, pode-se dizer, a própria gênese da literatura. Acontecem muitos eventos mágicos, animais falam, pessoas ressuscitam, mas é interessantíssimo observar o conteúdo dessas histórias e de que maneiras elas se relacionam com os povos que a contavam. O conto pária que citei acima é delicioso e o conto chinês é outro destaque. Mas há ainda uma versão italiana de “Romeu e Julieta”, antes de ser eternizada pelo Shakespeare. Eu gostei bastante também de “O destino”, antiga lenda iugoslava, em que um sujeito azarado pelo destino descobre um meio de escapar da má sina: dizer que as coisas que a ele pertencem são de outra pessoa, uma pessoa com melhor sorte. Gostei também “A lenda de La Sarraz”, conto suíço, sobre um sujeito que, depois de um encantamento, não morria mais. Há contos com diabos, contos de incríveis metamorfoses, contos com seres fantásticos dos mares, muitos contos que apresentam uma “explicação” popular para coisas que existem, para o próprio ser humano e a Terra. Nessa categoria se sobressai o conto hindu “Adima e Heva”, extremamente parecido com o mito de “Adão e Eva”, só que mais antigo, de tal forma que é impossível não constatar que o relato bíblico foi inspirado no relato hindu (uma notável diferença é que, no conto hindu, a participação da mulher é admirável ao longo de todo o conto, enquanto que no relato bíblico a culpa recaiu principalmente sobre ela). Há contos populares brasileiros, contos indígenas, contos negros, contos da África, do Peru, do México, da Irlanda, da Polônia, do Japão, da Coreia, de Macau e ainda outros lugares. Por fim, um conto de Hans Christian Andersen, “O rouxinol”, único conto com autor identificado na coletânea, mas que aos poucos vai se tornando anônimo, na medida em que o povo se apodera da história e a conta sem se preocupar com a origem. Uma viagem incrível, esse livro.

04/03/2019 – MARGUERITE YOURCENAR

Mais uma do clássico “Memórias de Adriano”:

“Duvido que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravidão; no máximo mudar-lhe-ão o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas mais insidiosas: seja transformando os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas que se julgam livres quando são subjugadas, seja desenvolvendo neles, mediante a exclusão do repouso e dos prazeres humanos, um gosto tão absorvente pelo trabalho como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. A essa servidão do espírito ou da imaginação, prefiro ainda a nossa escravidão de fato”.

07/03/2019 – CARRY VAN BRUGGEN

Essa holandesa, de família judia ortodoxa, é simplesmente comparada à Virgínia Woolf. Li um dos seus contos, “O incompreendido”, de 1907, uma verdadeira pérola da literatura, não holandesa, mas mundial. Lembrando mesmo a Virgínia no estilo, o conto fala sobre uma criança judia na escola e os seus temores por saber que seria chamado para fazer uma leitura oral em que teria que dizer a palavra “Jesus”, nome que, segundo o seu pai, jamais deveria ser pronunciado por um judeu. Ressalta-se toda a diferença que a criança sentia no tratamento dispensado a ele por professores e colegas, bem com o seu ressentimento por ser tão diferente dos demais. A escritora descreve tão bem as sensações da criança que qualquer um que já se sentiu, de alguma forma, desajustado ou rejeitado no ambiente escolar consegue se identificar imediatamente com a trama. Naturalmente, para um judeu essa sensação deveria alcançar níveis muito maiores. Tudo é escrito com muita beleza, com a autora conseguindo captar a inocência da criança – de certo por ser fruto também de algumas de suas experiências pessoais. Um conto realista e comovente, digno de figurar em antologias mundiais. Foi o primeiro “masterpiece” que li em “Contos holandeses”.

08/03/2019 – ESCRITORAS ANTERIORES A JANE AUSTEN

É Dia da Mulher, as editoras também festejam a data, mas eu quero saber mesmo é quando elas vão começar a publicar por aqui a INFINIDADE de escritoras inglesas anteriores a Jane Austen. Encontrei no livro “Mothers of the novel: 100 good women writers before Jane Austen”, de Dale Spender, uma lista de mais de 100 delas, que escreveram, somadas, 568 romances. Creio que, de todas elas, apenas a Ann Radcliffe e a Maria Edgeworth já foram algum dia editadas em terras tupiniquins. Segue a lista:

Penelope Aubin, Jane Barker, Agnes Maria Bennett, Elizabeth Bonhôte, Elizabeth Boyd, Sophie Briscoe, Eliza Bromley, Frances Brooke, Indiana Brooks, Mary Brunton, Mrs. Burke, Fanny Burney, Sarah Harriet Burney, Lady Charlote Bury, Mary Butt, Lady Mary Champion de Crespigny, Charlotte Clarke, Mary Charlton, Harriet Chilcot, Emily Clark, Jane Collier, Mary Collier, Anne Seymour Damer, Mary Davis, Anne Dawe, Anne Eden, Maria Edgeworth, Elisa Fenwick, Sarah Fielding, E. M. Foster, Anne Fuller, Phoebe Gibbes, Mrs. A. Gomersall, Sarah Green, Elizabeth Griffith, Susannah Minifie Gunning, Elizabeth Hamilton, Lady Mary Hamilton, Mary Ann Hanway, Laetitia Matilda Hawkins, Mary Hays, Mary Hearne, Elizabeth Helme, Elizabeth Hervey, Mrs. Howell, Anne Hughes, M. (Harley) Hugill, Maria Hunter, Elizabeth Inchbald, Susanna Keir, Isabella Kelly, Anne Kerr, Sophia King, Ellis Cornelius Knight, Sarah Landsdell, Mary Latter, Harriet Lee, Sophie Lee, Charlotte Lennox, Charlotte MacCarthy, Anna Marie Mackenzie, Jean Marschall, Eliza Mathews, Anna Meades, Mary Meeke, Margaret Minifie, Hannah More, Lady Morgan, Elizabeth Norman, Amelia Opie, Charlotte Palmer, Mary Elizabeth Parker, Catherine Parry, Eliza Phelp Parsons, Susanna Pearson, M. Peddle, Mary Pilkington, Mary Pix, Arabella Plantin, Elizabeth Plunkett, Ann Radcliffe, Mary Anne Radcliffe, Clara Reeve, Mary Darby Robinson, Regina Maria Dalton Roche, Elizabeth Singer Rowe, Susanna Rowson, Elizabeth Ryves/Reeves, Charlotte Sanders/Saunders, Sarah Robinson Scott, Frances Sheridan, Ann Emelinda Skinn, Eleanor Sleath, Charlotte Smith, Sarah Emma Spencer, Miss Taylor, Jane Timbury, Elizabeth Tomlins, Jane Warton, Jane West, Helena Wells, Helena Maria Williams, Mary Wollstonecraft, Mrs. A. Woodfin, Anna Yearsley e Maria Julia Young.

09/03/2018 – MARCELLUS EMANTS

Esse holandês é muito elogiado pelo Coetzee. Em “Contos Holandeses”, ele comparece com um conto dos mais deliciosos, cheio de um niilismo que funcionava como verdadeiro soco na cara do leitor. “Um excêntrico” deita no leitor o gosto de ler algo maior, ao menos um novela, porque o personagem (e suas ideias) bem merecia. Nas poucas páginas desse conto, são ditas muitas verdades difíceis de admitir e atinge-se com muita naturalidade uma densidade filosófica comparável a, sei lá, um Dostoievski. Trecho:

"Há algo mais absurdo de imaginar do que o amor? Olhe ao redor, onde quiser, e você verá que as pessoas não diferem muito umas das outras, nem interna nem externamente. Exceto por algumas corcovas, abortos, anomalias curiosas e grandes criminosos... e mesmo neles o tipo humano é facilmente reconhecível... os indivíduos apresentam apenas pequenas diferenças físicas e mentais. Contudo, um apaixonado surge com a ideia insensata de que um ser, de cuja existência até ontem ele nem suspeitava, em todos os aspectos, tanto externos como internos, é o ideal, elevado muito acima de todos os outros seres da mesma espécie. E para que seu disparate seja bem-sucedido, presume ter um direito de propriedade sobre esse ideal. Não consegue mais imaginar sua própria existência separada da desse ser e sonha com os mais deliciosos prazeres que desfrutaria se pudessem se unir a vida toda. Tudo o que o outro possui: olhos, nariz, boca, mãos, braços, até mesmo os órgãos em que nunca pôs a vista, o fará desmaiar de encantamento e, sem sinal ou sombra de comprovação, atribui à pessoa amada todas as qualidades de coração e espírito que na vida cotidiana passam por belas, nobres e boas. É fato amplamente reconhecido que uma pessoa nesse estado de desvario é irresponsável por seus atos; mas o que ninguém percebe é que a paixão deve ser considerada apenas como uma elevação temporária do mal permanente: o gosto de viver".

09/03/2018 – CONTOS HOLANDESES (1839-1939)

Coisa linda a dedicação do tradutor Daniel Dago com os escritores holandeses. Quem dera houvesse um Daniel Dago no Brasil para cada literatura ainda desconhecida por essas bandas. Nessa coletânea de contos holandeses, a primeira da América Latina, eu recomendaria ao leitor, entretanto, que começasse o livro não pelo começo, mas pelo conto “O monstro da China”, de Jacob Israäel de Haan. Não porque esse seja um conto fantástico, mas porque os contos anteriores, mais antigos, são, de maneira geral, muito difíceis, alguns deles extremamente enfadonhos, e se alguém começar a ler do começo é bem possível que fique com uma imagem nada boa da literatura holandesa. “O monstro da China”, embora um tanto bizarro, é bem mais compreensível que os contos anteriores e marca o início da melhor sequência do livro. Já em seguida, há “O incompreendido”, da Carry van Bruggen, do qual já falei. “Leonard e Juliaan”, de Albert Verwey, também é interessante e perfeitamente lível, assim como “O binóculo”, famoso conto de Louis Couperus que eu já havia lido. Vem então “Um excêntrico”, de Marcellus Emants, outro grande momento. Depois dessa sequência, o leitor pode ir alternando contos do começo e do fim do livro. Há uma série de experimentos formais ou estéticos e nem todos são muito fáceis. “O drama da pensão Casa na Praia”, de Edgar du Perron, chega a resultados interessantes nessa proposta. “Um dois três quatro cinco”, de Simon Vestdijk, é mais complexo, mas conta com uma trama cruel que desperta a atenção. Um outro destaque, já perto do fim, é “Teresa Immaculata”, de Hendrik Marsman, texto sobre o incesto de dois irmãos e que o próprio Thomas Mann havia considerado forte demais para publicar. O primeiro conto do livro, “Um homem desagradável no Bosque de Haarlem”, de Hildebrand, começa muito bem, a gente percebe um admirável e galante bom humor, mas em seguida, pareceu-me, perde-se em descrições que tornam difícil a leitura. “A morte da minha gata”, de Jacobus van Looy, foi, honestamente, um conto que, perto do fim, eu fiz uma leitura dinâmica dos parágrafos, porque não adiantava prestar atenção. Mas veio depois aquela sequência de que falei e, no fim das contas, a gente também gosta dos holandeses.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 09/03/2019
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