Os andarilhos do bem - feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII
Livro: Os andarilhos do bem - feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII.
Autor: Carlo Ginzburg.
Cia. das Letras, 1988.
O livro trata, como destaca o autor, da "mentalidade de uma sociedade camponesa - a friulana - entre o final do século XVI e meados do século XVII, de um ponto de vista extremamente circunscrito: a história de um núcleo de crenças populares que, pouco a pouco, em decorrência de pressões bastante precisas, foram assimiladas à feitiçaria". Este núcleo se refere a um culto de fertilidade (agrário) em que os "benandanti" (andarilhos do bem) combatem, em sonho ou delírio, contra bruxas e feiticeiros. Se vencerem, haverá abundância nas colheitas do ano seguinte. Se perderem, haverá penúria, fome.
Objetividade/Subjetividade:
O texto de Ginzburg se baseia em uma fonte por excelência: processos inquisitoriais utilizados pelos perseguidores para dar voz aos perseguidos, assim como na década de 70 faria o francês Emmanuel Le Roy Ladurie no clássico "Montaillou", sobre uma aldeia francesa.
Sem procurar interpretar cada fala camponesa, Ginzburg atesta que o que eles falaram aos inquisitores efetivamente chegou até nós. No prefácio, da o bra ele afirma que: "Se se excetua a tradução do friulano para o italiano efetuada pelos notórios do Santo Ofício, é lícito dizer que as vozes desses camponeses chegam diretamente até nós...". Sua preocupação, portanto, não é apenas com a análise do discurso, mas sim com a busca concreta de um conhecimento histórico.
Micro/macro:
O que se lê no livro são relatos individuais que habitam determinada região. A partir disto, Ginzburg pretende discutir determinadas crenças, suas permanências, e principalmente suas variações no período analisado. Estas crenças são comuns a um grande número de homens e mulheres no campo, a ponto do autor falar em "mentalidade camponesa". Ele parte, portanto, do micro para entender comportamentos que se estendem no tempo e no espaço. em determinado momento ele assevera que: "O mito dos benandanti liga-se, portanto, por múltiplos laços, a um conjunto de tradições mais vasto, longamente difundidos durante quase três séculos, numa área bem delimitada, compreendida entre a Alsácia e os Alpes orientais".
Sendo assim, podemos afirmar que o autor não quis escrever sobre algo pitoresco, que ocorria em um minúsculo canto da Itália, mas de tradições sustentadas por longo período, por um grande número de camponeses que habitavam um vasto território.
Cultura/Economia
"Os andarilhos do bem" é um livro sobre aspectos culturais populares não-ortodoxos em confronto co a religião dominante, e como esta cultura popular sucumbiu a esquemas que lhe eram estranhos.
Ginzburg mostra como o mito dos benandanti, que lutavam por boas colheitas, se "transformou" em feitiçaria e cultos diabólicos, os quais faziam parte da crença, não dos camponeses, mas do clero católico romano.
Todavia, o autor demonstra que não há um sufocamento puro e simples da religião e do poder dominante como um todo sobre a classe desfavorecida da sociedade. Ele diz que não podemos concluir que "a feitiçaria diabólica tenha sido, sempre e por toda parte, vivida mecanicamente como um mito imposto a partir de fora, sem vínculos com os desejos, temores e esperanças dos seus adeptos". Ou seja, os camponeses não eram passivos diante da pressão que recebiam do poder dominante, mas estavam reelaborando sempre suas tradições e práticas, a partir de experiências próprias. Suas crenças estavam mudando, mas não sem sua colaboração ou elaboração própria.
Nesta perspectiva, portanto, não temos uma cultura determinante, Pareceu-me claro na leitura do livro mais a preocupação do historiador italiano em investigar, apesar de generalizações bastante amplas, do que demonstrar uma tese ou modelo teórico acabado e pronto. Tive, inclusive, dificuldade em perceber alguma teoria bem defini da.
Sua ênfase investigativa fica demonstrada pelo seu apego às fontes que utiliza. Não há excessivas citações bibliográficas no livro, mas uma recorrência constante e repetitiva ao material ao qual teve acesso na pesquisa.
Entretanto, Ginzburg não deixa que "as fontes falem por si mesmas". Ele as articula e as submete a uma lógica histórica. É possível perceber no seu texto um processo histórico demonstrado.
No prefácio do seu livro, Carlo Ginzburg critica alguns autores que não souberam, segundo ele, lidar com as fontes. Por exemplo, registraram o termo "benandante" como sinônimo de "feiticeiro". Estes, que estudaram as tradições friulanas populares não perceberam o processo histórico das crenças destes camponeses. Concluindo, ele afirma que estes dois termos se constituem em sinônimos somente em um "estágio terminal e cristalizado de um desenvolvimento complexo, contraditório, que é possível reconstruir com notável precisão em suas várias fases".