MORAES, Márcio. Ler-se(r)Montes Claros: M.A.S.Moraes, 2016.


Prefácio

 

Como se faz um escritor? Se restavam uma e outra dúvida quanto a essa questão, quaisquer óbices nos parecem agora todos dirimidos. Um escritor não nasce de um dom, doado, dado, de presente. Caso o fosse, precisaríamos esperar alguns séculos até que surgisse um Camões ou um Pessoa, um Borges ou um Eco. Estes talvez renasçam, ou mesmo, e mais certamente, se extingam para sempre, porque não lhes foi dada uma dádiva, que poderia ser herdada por outros. Já até se cogitou, e muitos acreditam, que a habilidade para lidar com palavras é inata, mas se, de fato, o fosse, qualquer um ou ninguém poderia se tornar um artesão delas. E não é o que se verifica. Ao todo contrário, se nasce, individualmente, pobre de letras, sem herança de palavras. Mas elas vêm chegando aos poucos, se desenvolvendo e se criando até. Vão se formando intenções com o verbo, atitudes com os símbolos, ações com o que é dito, atos com o não dito, acontecimentos com as palavras que sequer saíram pela boca nem externaram a fortaleza do cérebro. Abruptamente, ou bem devagar, alguém descobre em seu íntimo, que as palavras podem ser cinzeladas, coloridas, moldadas, emolduradas. Mas ainda não nasceu aí o escritor.

Márcio Moraes nos explica, com clareza máxima, como se constitui um escritor. Ele nos esclarece, pela degustação de sua escrita, que cada texto seu demandou décadas para estar hoje pronto. Porque um escritor se forma. É assim com outras profissões. Não é algo fortuito porque é uma habilidade que se desenvolve.

Pelo que se nota sem dificuldade, observando esse engenheiro de enredos e arquiteto de versos, é que se formou um grande escritor através de busca diária de formação. Antes de dizer que o escritor Márcio Moraes nasceu, é preciso considerar, pela ordem clara dos fatos, que ele foi gerado, circundado por um líquido amniótico que se chama vida. O que ainda é insuficiente para fazer nascer um escritor, ou todos os viventes escreveriam as mais belas histórias. Márcio Moraes percebeu, ainda, que a vida precisa de uma sensibilidade amplificada para ser registrada com palavras escritas, menos rotineiras.

Preocupou-se mais além. Ocupou-se de uma questão elementar: “Como se faz um leitor?” Fez. Diariamente. Faz. E dos bons. Em sua biblioteca pessoal, é fácil supor, encontram-se clássicos da Literatura Mundial, e Nacional mormente. Menos fácil é imaginar que há escritores, pouco badalados pela crítica, que repousam nessas mesmas estantes. Isso assim se dá em vista de que, justamente, a percepção lhe foi excitada e esmerada durante décadas, a ponto de perceber verve onde geralmente não se percebe. Há, ainda nas suas estantes, e isso importa muito, volumes que não receberam dos próprios autores a alcunha de literários. Há linguística, história, filosofia, teologia. A palavra Literatura tem sido associada também a eles, de modo negligente, e a tudo que se compila escrito sobre qualquer assunto. Mas, nas estantes de Márcio Moraes, o título de Literatura encapa essas obras por motivos sublimados. Também esses livros, poderia ser previsto, constituem um escritor.

A sua escrita em Ler-se(r) é sensibilíssima. Isso sem perder a medida certa da levada do cinzel. As frases são curtas, mas poderosíssimas. “O passado não há.” E a escrita, de poucas palavras por vez, nos sugere tantos pensamentos: “Quem olha uma criança brincar, brinca com os olhos.”. A criação de imagens sinestésicas nos faz ver como se com nossos próprios olhos: “O caminho era longo como os braços que desejavam alcançar o corpo distante.” A agudeza de espírito nos traz visões inusitadas: “É difícil saber qual o propósito de um beija-flor fora das flores.”

A reflexão sobre temas atemporais nos satisfaz na leitura como um abraço de quem se tem saudade. A sensibilidade de “Lágrimas imperceptíveis” e do misterioso “Um quadro”, ou ainda de “Hoje é feijão” e “Felicidade”, com tantas evocações necessárias, inevitáveis no leitor, produzem uma leitura insólita. Dessa forma, acordamos em nós, ou mantemos alerta, o sêmen que vive com esforço, em nosso interior, nos dizendo que somos húmus. “A constância do bem não faz parte da natureza humana.” A sensibilidade que compõe um escritor salta das páginas e nos golpeia: “Não se toquem duas bocas, quando as almas estão distantes.”

A conversa com escritores idos e vindos é outra prova de que um escritor, dos bons, não nasce sem se gerar. Umas palavras de Márcio Moraes nos lembram Alejandro Amenábar: “E o que é a morte senão um estado de não-vida, o pré-nascer?…” Em “Mar adentro”, de Amenábar, foi dito que “morrer é como antes de nascer”. Que percepção diligente de ambos! Aliás, a morte, que é recorrente, em alguns textos deste livro, tem tratamento belo, belíssimo, como que vindo de alguém que viveu a morte belamente.

De outro lado, diametralmente oposto, está o humor. Aquele que já conviveu o bastante com o escritor já sabia disso, como poucos souberam que Eco era um piadista. O espirituoso “Debaixo da cama” só se nota assim no último parágrafo, numa mestra escrita dúbia.

Outras conversas com Gregório de Matos, Cruz e Sousa, José de Alencar, Castro Alves, Machado, Pessoa, Saramago, Drummond, Cora Coralina e com tantos escritores que marcaram visivelmente ou cicatrizaram com cicatriz interna a escrita de Márcio Moraes são outra contraprova contundente de que a habilidade com as palavras não é inata, mas construída com a contribuição de quem sabe falar, de quem sabe o que diz. “E o diálogo se inicia por palavras simples, carnudas e descontraídas, palavras contraídas, palavras traídas de tão sinceras, de tão verdadeiras.”

Como sabemos, ao nascer um escritor, nasce “não uma nova vida, mas uma nova ida”, visto que o escritor foi gerado ao longo de anos por vidas preexistentes. Márcio Moraes soube captar várias vidas e soube transformá-las em papel, papel cheiroso, papel molhado, limpo, sujo, sangrando, papel colorido.

A leitura de Ler-se(r) nos desvela segundos recortados no tempo, chronos, crônica, horas de sensações bem sentidas, a foto de um fato, dias de escrita e apagamento, décadas de sentimentos decantados, anos, anos e anos, talvez séculos, de construção de um escritor. Finda-se um ano, nasce alimento para o escritor. Inicia-se o dia, finda-se a escrita. “Comemora-se o extermínio do ano com fogos, mas se sepulta o dia com a cabeça no travesseiro.”


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