Curtos e densos

“O que mais chamava a atenção era a tristeza exacerbada de alguns familiares. Nos últimos meses de vida da defunta, as visitas rarearam. A velhice era um pré-coma do abandono. Descontados o zelo e o revezamento no hospital, por parte de Cecília, Maria e Joana, o restante compunha o extenso número de componentes da tradicional família (...). No último ato, representavam uma figuração digna de análise psicanalítica”.

Esse segundo parágrafo da página 19 de “Consertos de Oficina” (Editora Moinhos), da escritora charqueadense Cláudia Gelb, integra o conto “A espera”. Cláudia, quanto menos escreve, mais escreve. É tipo uma David Gilmour das letras, eis que, tal qual na música, na literatura às vezes menos é mais. Assim é o mais novo trabalho da autora, uma sucessão de pequenos contos diretos e densos, como a citação acima revela.

É, logo, um livro ideal para se ler no verão, principalmente quando se está de férias: dá pra ler suas 102 páginas numa sentada, à sombra, enquanto nos abrigamos do sol forte numa tarde tórrida; ou pela janela do ônibus, em viagem–viajem; ou feito pílulas, de quatro em quatro horas ou uma vez por dia. Tanto faz, dá no mesmo prazer literário.

“Consertos” inicia com uns contos inusitados e meio psicodélicos, como “Cão que ladra não morde?” e “Amor bandido”. Em seguida vem uma boa trinca de textos que são como jabs em sequência sobre o leitor, minando qualquer possível resistência ao livro: o citado “A espera”, “Desilusão” e “Mega Sena acumulada”. Três precisos disparos de sniper.

Mais adiante dois diretos, capazes de nocautear qualquer um: “O tempo é uma fração” e “A ponta do iceberg”. Dois torpedos a meia-nau. Desta forma, na página 58 o leitor já beijou a lona letrada ou já afundou completamente no oceano literário de Gelb. Depois é só ir adiante. Pelo menos comigo foi assim.

Duas palavras que encontramos nos contos expõe a alma de “Consertos”: carapuça e máscara. Metáforas que indicam a forma de as pessoas transitarem pelo mundo de maneira suportável nas questões de amor, tema principal do livro, informação que é a primeira coisa que Kledir Ramil escreve na orelha do mesmo.

E, “assim como são as pessoas são as criaturas”, vamos desvendando pelo olhar de Gelb “o lado escuro da lua”, aquela sabedoria que somente as viagens-viajens da literatura nos dão por meio até de “cada vaquinha deitada à beira da estrada” flagrada pela janela do busão, esticados e alheios ao calor externo devido ao nirvana do ar condicionado. A propósito, por falar em “nirvana”, sou, por experiência pessoal, mais Bukowski do que Yourcenar: “A primeira coisa de que me lembro é de estar debaixo de alguma coisa” (Misto-quente). A percepção de existir, dádiva fundamental, é o lugar do nascimento. Para sacar do que se trata, só lendo o livro.

Em Charqueadas, você o encontra na Livraria Garatuja, Hangar Center, Elétrica Delfin, M Kras Joalheria e na Biblioteca Municipal.

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FÓRUM SOCIAL – Desde o dia 17 de janeiro está acontecendo em Porto Alegre o Fórum Social das Resistências – Democracia e direitos dos povos e do planeta, organizado por ONGs, centrais sindicais e movimentos sociais. O FSR vai até sábado, dia 21. Programação completa em “http://forumsocialportoalegre.org.br”.



Artigo publicado nas versões impressa e online do jornal Portal de Notíciashttp://www.portaldenoticias.com.br