Resenha do livro "Tecendo Diários"
Sempre é digno de festas o lançamento de mais um livro de poemas.
Festejaremos o lançamento de "Tecendo Diários", de Rosy Feros na forma de um Suplemento dos Poetas Especial.
Pela publicação de alguns poemas selecionados, acrescidos de alguns comentários, esperamos homenagear mais uma poeta que engrandece a nossa literatura.
Adair Carvalhais Junior
A leitura pouco atenta de "Tecendo Diários" poderia revelar uma autora envolvida tão somente com seu mundo interior, sem contato algum com a vida de fora, já que os poemas de Rosy são, em essência, o resultado de um vasto mergulho em si própria.
"Papiro de Carne" serve bem como exemplo do que acabei de dizer e, mesmo sendo o último poema do livro, como perfeita
apresentação da poeta:
"Escrevo como quem enrola papiro.
Minha superfície de escrita é meu corpo.
As idéias escorrem pelos cabelos
e encharcam a pele, os ossos, as vestes.
Escrevo como quem burila a pele de todo dia.
Meu corpo é todo marcado de palavras...
Palavras que são ganchos,
que extraio de dentro da carne !
Ganchos que ferem,
mas que me fazem sentir mais a carne...
Meus ditos são pedaços de carne.
Carne crua e cheia de sangue.
Não escrevo como quem planta árvores.
Escrevo como quem revolve a terra."
Os versos de "Canhestra", escritos como que num repente, sem nos dar tempo de respirar, é disto que falam:
"Meu jeito canhestro de ser como a pedra
que guarda o que é e não se renega
que grita a todos seu ser sem reservas
é apenas um jeito de ser
de rir e de acontecer
de fazer festa
e jogar meu xadrez
com os dois peões:
o deus das aflições
e o demônio das tentações."
E se completam com esta declaração de propósitos de "A Mira Certa é Interna" que, já pelo título, expõe a essência da maior e mais importante busca da poeta:
"A mira certa é interna
Está ao centro altaneira
altiva completa consistente
Desafiando a lucidez
do papo mais catedrático e coerente
Quem sou ? E quem procuro ?
Eu não estou e em vão me curvo
À noite quero nascer
e me desprender para a madrugada
Quero romper com os tecidos
dessa estrada
que se curva aos meus pés
vestidos em asas
Com setas ligeiras
munem-se meus olhos
sem auto-piedade da própria cegueira."
No entanto esta seria uma visão equivocada e, ainda mais grave, estreita. Equivocada por que são pelos próprios versos que a poeta indica o caminho real que segue, como em "Como um Grande Vaso":
"minhas letras grandes dizem
do mundo que vejo
grande e largo
meus escritos são em mim
um trem sem repouso
um pasto largo
minha poesia põe fora
as falas graúdas
que dentro de mim guardo
a vida aflora em mim grande
gigantesca e farta
como um grande vaso"
E estreita pois não há, como os poemas de Rosy bem o demonstram, uma clivagem rígida entre a vida interior e a exterior, melhor dizendo, a poeta vive o mundo exterior pela reconstrução que sua sensibilidade e sua necessidade essencialmente humana de expressão operam. O que há, em suma, é uma interpenetração entre o vivido e o exprimido, como bem dizem os versos de "Bordado":
"desvelo sem fim
os novelos de mim
anunciando o novo dia
como quem termina uma lida
cortando os fios do absurdo
como quem bebe absinto
gritando rouca ao sem-fim dos mundos
como quem gira no carrossel dos loucos
desvelo sem ter
o bordado a tecer
apenas riscando
opções de viver"
E como reafirma, com todas as letras, o "Banquete"
"Tenho vontade de engolir o mundo,
conhecer seu sumo a fundo.
Tenho vontade de mastigar a vida,
com caroço e tudo.
Mastigar com meus dentes,
sentindo-lhe o gosto,
a pele, as sementes.
Quero comer da vida
como quem bebe da fonte,
saboreando seus gostos
como quem come um banquete."
A poesia de Rosy opera, de maneira original e extremamente sensível, esta interpenetração e, como teria que ser, com toda a
liberdade técnica necessária: há, ao longo do livro, uma diversidade de formas muito interessante, que vão desde aquelas
compostas com poucos versos, aparentemente jogados de maneira displicente sobre a folha de papel, como em "Infinito e
Desdobrado"
"não sei escrever letras miúdas
só sei escrever grande
não sei escrever estreito e apertado
não quero mutilar o meu lado
só sei escrever largo e comprido
rio infinito e desdobrado"
até composições mais complexas e elaboradas, como "A Tecelã"
"nascimento amor e morte
morte e ressurreição !
ascensão ao pico mais alto
mais alto que a salvação
caminho por ladeiras infindas
que me impedem de ficar em pé
minha alma é toda descida
e no mundo eu desço pé ante pé
sonhos selvagens malcriação !
meu desejo é a morte da ressurreição !
palavras e gritos sufocados
são meus antigos desejos finados
descendo no mundo
em minha grande noite escura
eu teço os fios brilhantes
de todas as minhas horas nuas
o amanhã eu teço
com os fios de meus cabelos
que crescem como eu cresço
o ontem são fios cortados
despejados no degredo
abismal de meus segredos!"
A liberdade técnica também se expressa pelo uso da rima, concebida como um recurso a mais e não como um grilhão dos quais os versos não se libertam. Percebe-se tanto em "Bordado" e "Banquete" os versos rimados fazendo companhia, muito naturalmente, a outros sem qualquer rima e, mesmo, poemas inteiros que as desprezam:
"não quero ser você
não quero ser mais ninguém
não quero ser ontem, nem hoje.
não quero ser amanhã.
só quero ser aquilo que sei
que não serei e não fui.
aquilo que sou.
sem mais, nem porém."
(EU)
Mas toda esta liberdade em momento algum deixa perder o que tem a poesia de mais significativo: o ritmo. Ao contrário, Rosy usa e abusa dos recursos mais diversos para imprimir aos poemas o ritmo perfeito.
Assim o uso, raro, de vírgulas, como nos versos de "Toque da Alvorada":
"Eu sei
que, quando abrir minha boca,
minha alma se alargará
e eu já não serei mais tão pouca."
(...)
ou de interrogações, interjeições, quebras de versos e, até mesmo, do simples recurso da transposição do ritmo interior, simples e destituído de todos os signos gráficos que não sejam palavra e sua disposição sobre o papel:
"Me sinto tão cheia de tudo
sereia serena
nadando no escuro
espreitando ávida
o sem-fim dos mundos
esperando as aves
que voam sem rumo
sentindo que nascer
é apenas morrer
no eu profundo"
(NASCER É APENAS MORRER)
Esta diversidade impede que se encontre, ao longo do livro, um traçado formal pré-concebido: cada poema carrega uma história própria, um desenrolar temático e formal único.
No entanto, a autora consegue, apesar e talvez por causa desta diversidade, costurar a necessária unidade do trabalho pelo diálogo íntimo que os poemas constróem e que só poderá ser saboreado por aqueles que, instigados por este pequeno extrato, leiam a obra completa.
Afinal,
"nosso destino é por demais extenso
para perdermos tempo
com pequenezas humanas
nosso destino é um barco imenso
quanto mais remamos
mais o braço cansa
nosso destino é por demais denso
para nos perdermos em meio
a tantas tramas
nosso destino é um lugar intenso
onde gostamos de estar
por estar"
(NOSSO DESTINO É UM BARCO IMENSO)"
[Resenha do livro "Tecendo Diários", Editora Blocos, 1999, Rio de Janeiro, publicada no "Suplemento dos Poetas" de 08/set/2000, veiculado semanalmente por e-mail pelo "PD-Literatura - O cyberjornal de literatura.]