Cenas de Favela

“Quem sou eu para te cantar, favela,

que cantas em mim e para ninguém a noite inteira, inteira de sexta

e a noite inteira de sábado

e nos desconhece, como igualmente não te conhecemos?

Sei apenas do teu mau cheiro: baixo a mim, na vibração,

direto, rápido, telegrama nasal

anunciando morte... melhor, tua vida.”

(Prosopopéia, Carlos Drummond de Andrade, Corpo, 1984)

Drummond escreveu certa vez que o Brasil teria que conhecer o seu interior para desvendá-lo de uma vez, mostrar sua face nua e crua. E o escritor Nelson de Oliveira organizou em Cenas de Favela, lançamento do selo Geração Editorial agora associada com a Ediouro, uma antologia onde o estereotipo da favela, um dos temas mais folclóricos e pitorescos do mundo e também um dos mais propícios a revelar duas das faces distintamente brasileiras: a fase lírica e a face trágica. O livro traz em suas páginas histórias de vários autores – clássicos e renomados, jovens e talentosos – da literatura brasileira, entre contos e trechos de romance, diários e poemas.

Oliveira, mestre em Letras pela USP e ganhador de alguns prêmios literários, entre os quais o da Casa de las Américas em 1995 e o da Fundação Cultural da Bahia (1996), é um escritor com obras já publicadas no exterior,e com essa sua nova antologia, a terceira que organiza (as outras duas foram: Geração 90: manuscritos de computador e Geração 90: os transgressores), fazendo dessa sua nova antologia a mais profunda no tema escolhido, indo além da estrutura estereotipada da favela para as manifestações literárias, demonstrando o local como um verdadeiro sinal dos puros instintos e das pulsões humanas.

Cenas de Favela – as melhores histórias da periferia brasileira, reúne textos escritos por 24 autores, dos clássicos aos mais jovens escritores, percorrendo vários aspectos – das cenas violentas e sangrentas às cenas ternas de amor e romance, amizade e heroísmo - do retratamento literário da favela. O titulo da antologia já aponta para as várias faces que a favela possui, não com o olhar jornalístico, mas o artístico em um conteúdo belo e amplo.

Em si só, o livro possui da capa ao miolo, um tom poético, no caso da capa a plástica de Silvana Mattievich colige a pobreza do morro, com os casebres e o lirismo de uma pipa no horizonte azulado. Cenas de favela traz contos não apenas dos estereotipadas violência e pobreza, mas a continua dignidade de homens e mulheres que constroem uma vida e uma família com tamanha adversidade.

Os 24 autores são: Carlos Drummond de Andrade, Rubem Fonseca (1925), João Antonio (1937-1996), Wander Piroli (1931-2006), Lygia Fagundes Telles (1923), Cecília Prada (1929), Carolina Maria de Jesus, Paulo Lins (1958), Sérgio Fantini (1961), Ferréz (1975), Luiz Ruffato (1961), Marçal Aquino (1958), Alberto Mussa (1961), Chico Lopes (1945), Fernando Bonassi (1962), João Anzanello Carrascoza (1962), Marcelino Freire (1967), Nelson de Oliveira (1966), João Paulo Cuenca (1978), Luis Marra, Ronaldo Bressane (1970), João Batista Melo e Antônio Fraga (1916-1999).

Encontramos contos famosos como o Feliz ano novo de Rubem Fonseca, com sua brutalidade meticulosamente narrada, uma leitura quase insuportável para leitores delicados, um conto que chegou a ser proibido em 1975; ou O Guardador de João Antonio, premiado com o Jabuti de 1993; ou ainda o pujante Lá no morro de Wander Piroli com a opressão familiar da narrativa rápida e seu desfecho inesperado. O conto O x do problema da imortal Lygia Fagundes Telles também se encontra na antologia, com sua rotatividade veloz, além de La pietà de Cecília Prada, onde a personagem Damiana enfrenta “uma fila enorme de mulheres de barriga avançando para o mundo”.

Trechos de livros e diários também foram organizados pelo autor, entre os quais citamos o trecho dos diários de Carolina Maria de Jesus, uma catadora de lixo que registrava o seu cotidiano em cadernos “descoberta” por um jornalista. Paulo Lins, escritor do livro Cidade de Deus , que traz na antologia as aventuras de dois compositores de samba-enredo no bonito conto Destino de artista. Outro bom texto encontrado é o Desabrigo de Antonio Fraga, uma novidade do carioca que foi resgatado recentemente por pesquisadores.

Temos também João Anzanello Carrascoza com “No morro”, no qual o leitor encontra momentos de ternura entre mãe e filho até que...; Luiz Ruffato, o seu primoroso “Ciranda”; de Marçal Aquino, o inquietante “Balaio” e de Marcelino Freire os contundentes “Muribeca” e “O Solar dos Príncipes”. Luis Marra está presente com “Pipas”; Joca Reiners Terron com “A espera” e Ronaldo Bressane, “Nervos.”, três contos poéticos e tristes. Fernando Bonassi publica “Trabalhadores do Brasil”.

E para fechar o livros, em papel escuro o poema iluminado de Drummond de Andrade já colocado no inicio desse artigo. Em conclusão, o trabalho de Nelson de Oliveira em reunir essa bela coleção de textos faz do livro uma boa maneiras de encontrar narrativas bem escritas, profundas e significativas, sugerindo o próprio título, comprometido com o habitante da favela ou como Drummond declamou:

“Precisamos descobrir o Brasil/ Escondido atrás das florestas/ com a água dos rios no meio/ o Brasil está dormindo, coitado”

Cadorno Teles
Enviado por Cadorno Teles em 03/04/2007
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