A sangue Frio, de Truman Capote
Um homem religioso, uma mãe depressiva, um adolescente, uma garota dona de casa, um cachorro amedrontado e dois ladrões frustrados. Esses e outros personagens são os ingredientes chave para o romance jornalístico A sangue frio, de Truman Capote. O livro é uma reportagem investigativa sobre o assassinato de quatro membros da família Clutter, o casal e seus dois filhos caçulas, ocorrido em 1959 na cidade de Holcomb, no Kansas, Estados Unidos.
O autor narra à trajetória dos últimos dias de vida dos Clutter: as idas à igreja, os jantares, as horas em frente ao televisor, os fins de tardes no quintal, as brigas de irmãos, as crises depressivas da mãe, as visitas, os telefonemas e cada passo que as vítimas deram antes de serem brutalmente assassinados. Os detalhes irreparáveis e as cenas precisas descritas no trabalho levam a crer que o autor dedicou longas horas de esforço e talento durante o período de um ano e meio que esteve entre amigos, familiares, vizinhos, policiais e os próprios assassinos das vítimas. No entanto, algo curioso soa forte aos ouvidos: Capote jamais usou gravador ou fez qualquer tipo de apontamento. Eis que surgem os primeiros traços obscuros da obra, que por muitos é considerada um clássico do jornalismo literário.
O bom jornalismo é a arte de contar histórias, isso não quer dizer inventá-las. O perigo da falta de registros é, exatamente, a falta de crédito. Mas a forma como Capote envolve a realidade no manto brilhante do romance, turva tanto a defesa quanto a censura de sua obra. Os textos possuem uma semântica atraente, em que é impossível começar e não terminar de devorar cada palavra minuciosamente selecionada. Outro fator em destaque entre o quadro de adjetivos de A sangue frio é a métrica da composição das frases. Cada vírgula e ponto final soam como um tilintar suave, mesmo na descrição das cenas mais estarrecedoras.
A elegância da obra conquistou o próprio escritor, que a denominou sua “obra-prima”. Capote encontrou a pedra bruta de seu trabalho (a pauta) numa pequena nota entre as várias páginas de um jornal. Desde então, passou seis anos e meio de sua vida investigando, entrevistando, observando, conhecendo o local do crime e construindo amizade com os assassinos. O trabalho de Capote, apesar do prazer da leitura e dos elogios – méritos de um poeta –, deixa brechas para críticas.
Primeiro, o fato de ele relacionar-se afetivamente com alguns dos personagens do crime, em especial Perry Smith, um dos assassinos da família Clutter – na verdade, o assassino. Capote dedica um capítulo inteiro para descrever a personalidade e as características físicas do criminoso. Comentaristas admitem que Capote teve relações sexuais com o assassino na prisão e que este o revelara todos os passos do crime ao pé do ouvido. Especulação? Talvez. As páginas de seu livro e sua ordem sexual não excluem tal possibilidade. Em vista disso, como fica a imparcialidade de um camarada que via no elemento chave da investigação seu objeto de desejo?
O segundo ponto a ser colocado em xeque é a ética do escritor. Durante as entrevista com os assassinos, ele prometia que as informações seriam vinculas de forma a convencer o mundo de que eles não eram apenas homicidas ou psicopatas, mas dois seres humanos. Para isso, no entanto, Capote intitula seu livro de A sangue frio, um título nada justificador.
Contudo, depois de um exame exaustivo da obra é impossível deixar de admirá-la. Seja lá qual tenha sido a vida permissiva ou as estratégias usadas para obter as informações, Capote revela a irrestrita capacidade que o jornalista tem de descrever a realidade.
O fruto do trabalho de Capote é apenas um reflexo dos anos em que exercitou a criatividade e o vocabulário num chalé nos Alpes suíços ¬– local que usou para concluir seu trabalho – junto a sua máquina de escrever. Mas, muito mais do que as palavras, foi a maneira como desbravou o fato. Capote não apenas cutucou a cruel ferida da morte; ele descreveu os desafios da vida. O trabalho de Capote ousou observador detalhes, escarafunchar informações, adquirir confiança das fontes e, por fim, revolucionar os gêneros tradicionais de jornalismo policial. A primeira publicação de sua reportagem foi em 1965 na revista The New Yorker, em quatro partes. Um ano depois, o livro A sangue frio destacava-se entre as publicações mais procuradas das bancas e livrarias.
Capote ousou possuir a fama e o prestígio. A sorte e o talento o permitiram. Infelizmente, a verdadeira realização – a vida –, ele trocou por copos de whisky e alguns momentos de êxtase.
Cabreira