CULTURA, ARTE, POLÍTICA E SOCIEDADE DE MASSAS EM HANNAH ARENDT
CULTURA, ARTE, POLÍTICA E SOCIEDADE DE MASSAS EM HANNAH ARENDT
Próxima da Escola de Frankfurt, mas sem dela fazer parte, Hannah Arendt, admirável representante da cultura de Weimar, é uma filósofa cuja contribuição teórica encontra-se em sua profunda pesquisa filosófica sobre os determinantes que assinalaram o fenômeno da ruptura entre o passado e o futuro na sociedade moderna – fato que deu origem, no âmbito da política, à irrupção do totalitarismo. Traçando um paralelo entre os fenômenos nazista e stalinista, Arendt procura denunciar um fato bastante atual que impregna a sociedade hodierna, o qual consiste na distinção entre surtos do totalitarismo ainda em movimento e o totalitarismo no poder. Por intermédio de uma análise sistemática do processo da massificação social, Arendt explicita o que caracterizou, afinal, no decorrer da década de 30 do século passado, o florescimento dos movimentos tanto nazistas quanto comunistas; ou seja, ambos se dirigem a uma massa que, num momento anterior (em finais do século XIX), fôra denominada apática, acossada ou indiferente a todos os partidos políticos, vivenciando tão-somente uma espécie de colapso do sistema de classes das nações européias. Assim, aproveitando-se desse colapso das barreiras protetoras existentes entre as classes sociais, na concepção de Arendt, o conceito de “massas” torna-se fundamentalmente diferente do conceito de “populacho” - que impregnava os discursos políticos no decorrer do século XIX. Nesse sentido, a relação entre a sociedade de classes (sob o domínio da burguesia) e as massas, que emergiram do colapso acima apontado, não mais se identifica com a relação vigente anteriormente entre a burguesia e o populacho. Assim, se o populacho “herda” os critérios e as atitudes da classe dominante, as massas refletem os critérios e as atitudes de todas as classes em face dos negócios públicos.
Nessa primeira aproximação do pensamento filosófico de Arendt, evidenciam-se algumas das principais preocupações da filósofa no que concerne, sobretudo, à automação da vida moderna, isto é, à massificação, fenômeno que consiste na incapacidade do homem moderno em exercer a atividade política enquanto atividade por excelência. Tal fato se dá mediante o declínio da esfera pública - declínio determinado por fatores históricos os quais ensejam uma atitude meramente subjetiva do homem frente ao mundo, que resulta na ascensão do homem-massa -, culminando no que Arendt nomeia de “a alienação do mundo” ou o deslocamento geral, ou ainda, a transição, na história moderna, da sociedade de classes para a sociedade de massas.
Tendo o mundo grego da “pólis” como paradigma de toda sua produção teórica, Arendt já argumentara em “A Condição Humana” (1958) que somente a presença de outros, que vêem e ouvem o que vemos e ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós próprios. Desse modo, todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos, mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. Nesse caso, o totalitarismo, como sistema de governo, só se torna possível num mundo na qual a realidade os homens não acham mais suportável, devido, sobretudo, à destruição da esfera pública - cuja gênese deita raízes na antiga Grécia -, que oferece um sentido e um significado às suas vidas. Por outro lado, a característica essencial das massas modernas, consoante Arendt, reside justamente no fato de que elas
“... não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria existência; não confiam nos seus olhos e ouvidos, mas somente na sua imaginação (...) O totalitarismo não procura o domínio despótico dos homens, mas sim um sistema em que os homens sejam supérfluos. O poder total só pode ser conseguido e conservado num mundo de reflexos condicionados, de marionetes sem o mais leve traço de espontaneidade (...).” (Arendt [s.d.], p. 221)
O pessimismo de Hannah Arendt em relação ao mundo político contemporâneo e suas melhores intenções no que se refere à recriação do espaço público e, em última instância, na criação da base filosófico-política no sentido de elevar a consciência humana acima da condição solipsística do “animal laboruns” encontram-se registrados extensivamente em suas obras, sobretudo em “As Origens do Totalitarismo”; “A Condição Humana” e “Entre o Passado e o Futuro”, dentre outras. Escolhamos, neste ponto, o capítulo VI, da última obra citada, intitulado “A Crise na Cultura: sua importância social e política”, objetivando não só tecer alguns comentários sobre os argumentos apresentados, bem como para nos determos numa análise mais atenta em torno do pensamento de Hannah Arendt.
“A Crise da Cultura: sua importância social e política”/ RESENHA do Capítulo VI in ENTRE O PASSADO E O FUTURO, de Hannah Arendt
No início do referido capítulo, Arendt procura equacionar, segundo semelhante lógica aplicada a um tema há pouco abordado, isto é, sociedade de classes versus burguesia - século XX - e populacho versus burguesia - século XIX -, os conceitos de sociedade e cultura versus sociedade de massas e cultura de massas. A problematização da referida questão propõe-se a auxiliar em evidenciar até que ponto “a relação entre sociedade de massas e cultura será, ‘mutatis mutandis’, idêntica à relação anteriormente existente entre sociedade e cultura...”, segundo palavras de Arendt em “Entre o Passado e o Futuro”.
Acentuando a ruptura entre o passado e o futuro, fenômeno genuíno na cultura moderna, em contraposição à noção de continuidade da cultura antiga, Arendt, neste capítulo, desenvolve um amplo campo de reflexão sobre a cultura moderna, oferecendo-nos, com efeito, as chaves necessárias para a compreensão do referido fenômeno. Nesse sentido, “Entre o Passado e o Futuro” tem início elucidando a lacuna ou o esfacelamento da tradição como algo procedente, a princípio, do campo intelectual, inspirada notoriamente por três notáveis filósofos, isto é, Sören Kierkegaard, Karl Marx e Friedrich Nietzsche.
Na concepção de Arendt, Kierkegaard, Marx e Nietzsche anteciparam, na esfera do pensamento, este “esgarçamento da tradição”.
Em linhas gerais, isso consiste - a propósito da filosofia de Kierkegaard, como enfatiza Arendt - na condição do aspecto concreto do homem que se revela como sofredor, colocando a filosofia de Kierkegaard num acentuado contraste com o conceito tradicional do homem como ser racional – como bem assegura Arendt, uma vez amparada em nosso patrimônio cultural. Nesse caso, subverte-se a relação tradicional entre a fé e a razão (na qual o “cogito” cartesiano prevalece) pelo “salto racionalmente absurdo da dúvida pela fé.”
Quanto a Marx, Arendt aponta para a explosão da tradição provocada pelo pensamento marxiano, sobretudo no que se refere à radicalização de alguns de seus mais consagrados conceitos, isto é, “o trabalho cria o homem”, o que equivale a dizer que o homem cria a si mesmo pelo trabalho. Nesse caso, o homem é um “animal laborans” e não um “animal rationale”!
Por outro lado, se “a violência é a parteira da História” (Marx), tal enunciado equivale a dizer que a capacidade dos homens livres de se persuadirem pela palavra é nula. E, finalmente, Arendt critica a atualização da Filosofia na Política operada por Marx, provocando, com tal inversão, modificações radicais no conceito de História e, conseqüentemente, aprofundando o fosso que separa a modernidade da nossa tradição cultural.
De outra parte, opondo-se ao conceito tradicional do homem como ser racional, na concepção de Arendt, Nietzsche, insistindo na produtividade da vida e na vontade de poder do homem, em vez da dúvida metódica adstrita ao pensamento, o referido filósofo praticou a negação metódica, numa contestação contundente contra todos os valores transcendentais elaborados pela tradição e classicamente considerados como freio ao niilismo. Assim, com Nietzsche, o niilismo parece se tornar profético. Nesse caso, o que se pode extrair do espólio nietzschiano é que a sociedade moderna ao atender preceitos oriundos da reflexão filosófico-niilista transformou os valores criados pela tradição em valores funcionais, em entidades de trocas.
Com essa tríade interpretada, Arendt denuncia como o filisteísmo, propagado pela classe média em ascensão durante o século XIX, fez da cultura mero instrumento de mobilidade social, na verdade, uma mercadoria social, consumindo cultura na forma de diversão e dando início ao processo de desvalorização dos valores inscritos em nosso patrimônio cultural. Aprofundando-se no referido argumento, Arendt situa a transição da “boa sociedade”, composta de indivíduos que dispunham não tão-somente de dinheiro, mas também de lazer ou tempo necessário para devotar à “cultura”, rumando para um novo estado de coisas suscitado pela ascensão da sociedade de massas, pois, uma vez liberados do trabalho físico extenuante para garantir a própria sobrevivência, todos os indivíduos privados daquele “espírito vivificador” - oriundo do cultivo da cultura - foram, na sociedade de massas, contemplados com lazer abundante para se dedicar à cultura. Nesse sentido, todas as vias de escape dos indivíduos não incorporados aos diversos estratos da população estão fechadas, provocando no homem moderno ou no homem-massa a sujeição a todas as pressões deflagradas pelas relações de poder existentes na sociedade de massas, inclusive aquelas formuladas pelas filosofias sociais que, mediante certa literatura filosófica, encontra na glorificação dos trabalhadores o seu ponto de apoio.
A Sociedade de Massas e o Artista
Iniciemos destacando o que Arendt classifica como “uma importante diferença entre os primeiros estágios da sociedade e da sociedade de massas com respeito à situação do indivíduo.” (ARENDT, Hannah. “Entre o Passado e o Futuro”). A partir deste argumento, Arendt passa, então, a analisar a atuação do artista inserido no contexto da sociedade de massas, classificando-o como o único indivíduo genuíno presente na referida sociedade. Uma vez submetidos às condições da sociedade de massas e envolvidos no conflito que se verifica entre sociedade e indivíduo, tal situação gera o “grito subversivo” do artista, porque ele se sente angustiado ao perder a própria identidade, sobretudo pela causa materialista de toda psicologia autoritária que se revela capaz de mobilizar de modo racional as massas; “grito” emitido pelo indivíduo que deixa atrás de si toda quintessência das realizações humanas; em última instância, as obras de arte.
O Divórcio entre a Arte e a Realidade
Considerando que o libelo do artista fôra sintetizado muito cedo - em finais do século XVIII -, quando se fez uso da palavra filisteísmo para designar a mentalidade pragmática, isto é, uma mentalidade disposta a considerar todo e qualquer valor implícito na cultura e na arte como algo inútil, de acordo com Arendt, o âmago da questão, no interior das sociedades de massas, converteu-se no seu contrário, ou seja, a sociedade de massas passa a se interessar de tal forma por todos os valores culturais (filisteísmo culto) que principia a agir no sentido de monopolizar a cultura, efetivando, com isso, uma simbiose crescente entre a cultura comercial e a autêntica ou verdadeira arte, na qual a cultura (caso entendamos o conceito de cultura como o modo de relacionamento do homem com as coisas do mundo - inscrito numa tradição) passa a ser sinônimo de coisa utilizada para finalidades dissimuladas (como por exemplo, auto-educação ou auto-aperfeiçoamento), fato que contribuiu, sobremaneira, para a diluição do relacionamento genuíno da própria cultura com a arte. Nesse caso, tal estado de coisas encontra na figura do filisteu educado o representante máximo e responsável pela proliferação da cultura “kitsch”, que se traduz, grosso modo, no divórcio entre a arte e a realidade. Em outras palavras, quando a cultura é destruída para produzir entretenimento ocorre a ascensão da cultura de massas. Arendt fundamenta tal argumento por intermédio da escala de atividades humanas, isto é, Labor, Trabalho e Ação, apresentada em sua obra mais ambiciosa, isto é, “A Condição Humana”. Assim, “se a cultura relaciona-se com objetos e é um fenômeno do mundo; o entretenimento relaciona-se com pessoas e é um fenômeno da vida.” (idem acima); o Labor, o Trabalho e a Ação não constituem, apenas, formas diferenciadas de atividades para Arendt, mas comportam, também, uma escala hierárquica na qual cada degrau assinala o que poderíamos denominar de um nível de percepção humana progressivamente ascendente. Nesses termos, grosso modo, o Labor assegura a sobrevivência do indivíduo e a vida da espécie. O Trabalho garante a durabilidade do caráter efêmero do tempo humano (aqui se inclui a atividade do artista e respectiva produção, isto é, as obras de arte) e a Ação, condição humana de pluralidade que se afirma mediante a relação dialógica na qual o indivíduo pode revelar sua verdadeira identidade.
Por conseguinte, Arendt defende a tese de que a cultura é sempre ameaçada quando todos os objetos e as coisas seculares – produzidos tanto pelo presente quanto pelo passado – são tratados dentro de uma lógica de pura funcionabilidade, como meras funções para garantir o processo vital da sociedade; ou ainda, para satisfazer alguma necessidade desta mesma sociedade, indiferente em saber se as necessidades em questão são de ordem superior ou inferior. Desse modo, a função primordial da cultura de massas, na concepção de Arendt, reside nessa capacidade de romper com a escala de atividades inerentes à condição humana (Labor, Trabalho e Ação), apoderando-se dos objetos culturais e abandonando-os ao processo vital da sociedade que, como todos os processos biológicos, arrasta insaciavelmente tudo o que se encontra disponível para o ciclo de seu metabolismo. A lógica deste processo, nas palavras de Arendt, resulta no seguinte:
“O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude do consumo, condena à ruína tudo em que toca.” (Arendt 1972, p.264)
Cultura, Arte e Política
Ao conceitualizar a relação que se estabelece entre Cultura, Arte e Política, Arendt, visando um efetivo esclarecimento da questão, procura aplicar em sua reflexão os dois conjuntos relacionados de conceitos formulados dentro de sua perspectiva antropológico-filosófica oriunda de “A Condição Humana”, ou seja, de um lado, os conceitos de Labor, Trabalho e Ação; d’outro lado, os conceitos das esferas de atividades privada ou pública.
A estética é uma invenção do Aufklärung (Iluminismo). Desde Sócrates, a Filosofia preocupava-se com a arte. Haja vista a embaraçosa pergunta formulada por Sócrates e que já incomodava os atenienses: O que é o Belo? Por outro lado, Platão, ao conceber o mundo como uma cópia do “Mundo das Idéias” propõe uma reflexão sobre a arte como imitação. Nesse sentido, é na antiga Grécia que surge o conceito de “mentalidade banáusica” (mentalidade que indica meios e fins), objetivando denominar aqueles que efetivamente produzissem o belo, ou seja, o artista. Para os antigos gregos, a arte de fabricação era utilitária por sua própria natureza e representava uma constante ameaça tanto à política quanto ao próprio âmbito cultural, caso prevalecesse, neste último, a mentalidade que as trouxe [as obras de arte] à existência. “Em outras palavras, a maior ameaça à existência da obra acabada emerge precisamente da mentalidade que a fez existir.” (idem acima). Assim, na antiga Grécia são mantidos os conflitos existentes entre Cultura, Arte e Política, ou ainda, entre o “homo-faber” (Trabalho) e o “homem de ação” (Ação/Política). Entretanto, a civilização romana, em seu período inicial, possui uma concepção bastante distinta da dos gregos em relação à referida questão, visto que os romanos convenceram-se de tal forma que artistas e poetas se dedicavam a um passatempo pueril que suprimiram, decisivamente, todos os talentos artísticos antes da influência artística grega. Nesse sentido, Roma insistiu em liqüidar o conflito entre Política e Arte.
Ancorados na reflexão arendtiana sobre este tema, poderíamos consumir páginas e páginas na tentativa de estabelecer o que une e o que separa estes conceitos na obra da filósofa alemã. Nesse caso, tratemos de delimitar o terreno. Se de acordo com Arendt existem três experiências humanas básicas, isto é, o Labor, o Trabalho e a Ação, são os conflitos existentes entre os partícipes das esferas do Trabalho e da Ação (“homo faber” e homem político, respectivamente) que Arendt procura explorar especificamente no presente texto; noutras palavras, a verdade acerca da desconfiança mútua entre o homem político e o homem estético (o artífice) no contemporâneo. Pensamos que o intento de Arendt, neste ensaio, é tentar justificar a desconfiança acima citada como um fator positivo, esclarecendo-nos, desse modo, a importância da permanência deste conflito como veremos a seguir.
De acordo com a visão antiga, isto é, a visão greco-socrática, era impossível conciliar a paixão (qualidade singular do “homo faber”, pois a paixão o inspira na confecção de obras de arte) com a atividade política ou com a virtude cívica. Desta perspectiva, o artífice é condenado no “tribunal do logos”, isto é, do agir e do falar, ou melhor, da esfera pública, que sempre requer a presença de outrem para a sua autêntica caracterização. Se a desconfiança (na sua origem é platônica!) do homem político em relação ao homem estético subsiste atualmente é “... pelo fato de ter a mentalidade de fabricação invadido o âmbito político a ponto de darmos por certo que a ação, mais até que a fabricação, é determinada pela categoria de meios e fins.” (idem, p.271). Nesse sentido, talvez não seja difícil examinar as razões desta desconfiança. Prosseguindo com Arendt: “É esta a verdadeira indisposição do artista, não pela sociedade, porém pela política (...)” (idem acima), pois os políticos não vêem com bons olhos o inconformismo que pulsa na alma artística. Por outro lado, os artistas pressentem o dirigismo latente ou explícito no homem político. Com efeito, “nesse ponto emerge o conflito entre a arte e a política, e tal conflito não pode nem deve ser solucionado.” (idem acima). Devemos ressaltar que nesta passagem fica registrada a atitude deliberada de Arendt em recorrer aos valores inscritos na tradição grega. Desse modo, a insolubilidade do conflito permanece em função de nem uma nem outra (a Política e a Arte) pertencerem à mesma ordem da verdade científico-filosófica aventada por Arendt, que adota a escala de atividades Labor, Trabalho e Ação, reservando a cada uma destas dimensões as suas singularidades respectivamente específicas. Por outro lado, nada impede que estas três atividades, embora distintas, guardem entre si certos vínculos ou afinidades, posto que revelam e tecem a condição humana. Na trilha desse raciocínio, Arendt registra no presente estudo o momento no qual a Arte e a Política coincidem. Se ambas estão circunscritas em esferas distintas das atividades humanas, o elemento comum que liga Arte e Política é serem, ambas, fenômenos do mundo público. Ampliando o parentesco existente entre o “homo faber” e o “homem de ação”, Arendt indica a “cultura animi” (resultado da educação filosófica, para traduzir o termo grego “Paidéia”) e o fenômeno do gosto (o gosto enquanto uma atividade da mente realmente culta) como elementos decisivos para dar origem ao conceito que Kant denominara de “mentalidade alargada”, ou seja, “não bastaria estar em concórdia com o próprio eu, e que consistia em ser capaz de ‘pensar no lugar de todas as demais pessoas...” (idem, p.274).
Portanto, se a eficácia do juízo (no caso específico, a capacidade para julgar uma obra de arte), para ser válido, depende não só da presença dos outros como também revela que a capacidade para julgar é uma faculdade especificamente política, então
“Cultura e Política, nesse caso, pertencem à mesma categoria porque não é o conhecimento ou a verdade o que está em jogo, mas sim o julgamento e a decisão, a judiciosa troca de opiniões sobre a esfera da vida pública e do mundo comum e a decisão quanto ao modo de ação a adotar nele além do modo como deverá parecer doravante e que espécie de coisas neles hão de surgir.” (Arendt 1972, p.277)
Se os cientistas políticos ensinam que a consciência que se tem da realidade “integra e afeta essa mesma realidade”, como já afirmara Celso Lafer (discípulo da filósofa alemã), pensamos que o que Arendt pretende demonstrar é exatamente isto, ou seja, o modo de consciência no homem se dá conta da diferença entre ele, sujeito, e o objeto dos seus esforços; que tem a capacidade de julgar suas ações, permitindo que seus feitos sobrevivam, assegurando desta forma sua imortalidade. Portanto, um modo de consciência que, independente de pertencer a uma esfera ou outra (“homo faber” ou “homem de ação”), integre e afete, a partir do sistema político, a realidade. Para que isto seja possível, na concepção de Arendt, é preciso desmontar o tabu do poder e rumar para a defesa das regras do jogo democrático, evitando, com isso, flertarmos com modismos de correntes totalitárias (stalinismo, nazismo e outros que tais) tão exaustivamente estudadas em sua obra intitulada “As Origens do Totalitarismo”.
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
______________. Origens do Totalitarismo. In “Totalitarismo” (cópia xerox datada de 1988 da primeira edição do livro no idioma português) [s.d.].
______________. Entre o Passado e o Futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
Campinas, é primavera de 2006