Visita a Florença (extraído do livro Álbum de Recordações)
O ônibus continuava a deslizar pelo asfalto macio das auto-estradas. De minha poltrona, ao lado da esposa e bem próximo da filha, acomodada em outro assento, segui ouvindo músicas cantadas em castelhano ou em dialeto de algumas regiões dos Alpes Suíços. Encantava-me com a paisagem verde, exceto em alguns terrenos pedregosos. Já havia percorrido centenas de quilômetros após ter estado na Espanha. Naquele momento, ainda trafegava pela Itália, em visita a importantes cidades.
Florença foi mais uma parada. O sexto estágio de extensa viagem. Depois de acomodarmos as bagagens no hotel, saímos a passear. As ruas da cidade são iguais às de qualquer metrópole. As pessoas andavam pelas calçadas, olhavam vitrines, faziam compras ou simplesmente conheciam as novidades, admiradas com a arquitetura de prédios antigos.
Florença recebe grande número de visitantes em suas ruas centenárias e milenares. Trata-se de cidade turística bastante concorrida. Em meus passeios, visitei lojas, comparei preços, gastei pouco. Minha esposa e minha filha me superaram nos gastos. As mulheres são assim mesmo, torram dinheiro a esmo em compras supérfluas. No meu caso, agi com absoluta sobriedade: adquiri um par de óculos escuros, estilo italiano, para usá-lo em exposição ao sol. Não tive outra intenção, pois não acredito, como as mulheres, no efeito renovador das aparências mediante uso de simples acessório.
A cidade florentina assemelha-se a extraordinário museu, seja entre quatro paredes de prédios gigantescos ou a céu aberto. É um dos centros mais importantes da Itália, cultural e economicamente.
No século XIII, os artistas de Florença foram influenciados pela arte bizantina, baseados na cultura do Oriente, à época dominado pelo Império Romano. Com o tempo, livraram-se dessa influência e passaram exercitar a arte sob os auspícios de nova escola, a florentina, sob orientação de Giotto di Bondone.
Nos primeiros anos do século XVI, surgiram exponenciais figuras no campo das artes e da cultura, tais como Michelangelo, Dante e Maquiavel, principalmente, nascidos nos domínios da velha cidade florentina. Naqueles tempos, as cidades eram cidades-estado, de grande alcance territorial, com independência administrativa e política, governadas por reis e príncipes. As dinastias se sucediam nos tronos, perpetuando-se no poder.
A arte de esculpir teve início em Florença com a participação de Nicola Pisano, artista nascido na cidade de Pisa. Michelangelo, todavia, influenciou a todos os escultores florentinos de sua época.
Os temas esculturais foram desenvolvidos primeiramente na fachada da catedral e depois nas grandes portas do Batistério, a partir de 1330. A porta chamada, merecidamente, de Porta do Paraíso, denominação atribuída a Michelangelo, é de autoria de Lorenzo Ghiberti. O artista a esculpiu em bronze, entre os anos de 1425 e 1452, auxiliado por seus filhos. Foram gastos, portanto, vinte e sete anos em sua primorosa elaboração, em estilo renascentista. A Porta do Paraíso é, sem dúvida, a mais extraordinária porta de uma catedral. Inigualável. Maravilhosa. Indescritível.
Os lindos painéis dos dez quadros da magistral Porta do Paraíso representam, entre outros, a batalha contra os Filisteus, o Rei Salomão recebendo o templo da rainha de Sabá, Moisés sobre o Monte Sinai, com as tábuas da Lei, e grande quantidade de esculturas de variados tamanhos.
Uma visão inesquecível!
A catedral de Florença, como todas as igrejas que tive o prazer de conhecer, incorpora-se às fabulosas construções em ricos estilos arquitetônicos, marcantes, refletindo as influências de cada época. Sua edificação, de magistral esplendor, foi iniciada em 1294. Autêntica. Tudo é esmeradamente elaborado. As capelas, os altares, os vitrais coloridos, a decoração artística, tudo me transportou, como nas demais por onde passei, a um mundo de encantamento cultural e artístico sem precedentes em minha vida.
Nessa igreja, visitei sepulturas de grandes personalidades históricas: reis, príncipes, artistas... Não faltam a esses mausoléus a criatividade, a arte e o bom gosto de Andréa de Castgno, com seu belo trabalho ornamentando o túmulo de Nicolau de Tolentino, ou o talento de Paulo Uccello, representando uma belíssima obra envolvendo a tumba de Giovanni Acuto, um inglês que esteve a serviço da República Florentina.
Um painel de Domenico de Michelino, de 1465, está colocado na abertura do arco da nave esquerda da catedral; trata-se da obra Dante e a Divina Comédia, tela que representa o inferno, o purgatório, o paraíso e uma imagem de Florença nos tempos de Dante.
Não pára por aí o desfile de arte e beleza. O Museo Della´Opera abriga obras do complexo da catedral. Na Sala dos Coros poderão ser vistas diversas esculturas em seus pedestais, outras afixadas nas paredes laterais e, ao fundo, também preso à parede, lindo tapete decorativo; esculturas de santos católicos, de profetas, como a de Jeremias e de Maria Madalena, esta última entalhada em madeira, por Donatello. E mais: um hexágono retrata a “embriaguez de Noé”, conforme descrita na Bíblia; linda escultura, de 1553, inacabada, reproduz quatro personagens: um, representado Cristo, descido da Cruz, e três outros seguidores do Mestre, segurando-O nos braços. Esta foi uma das últimas obras de Michelangelo, que a esculpiu pensando colocá-la em seu próprio sepulcro. Morreu sem concluí-la, mas lhe dera o título: La Pietá. Eu, na minha santa ignorância, até então não sabia da existência de outras esculturas do autor, batizadas de “A Piedade”. Dizem que, entre as Piedades de sua lavra, esta é a mais dramática. Não poderia ser diferente. Michelangelo sentia a proximidade da morte e se preparava para decorar o túmulo onde passaria a residir.
Gesto difícil, mesmo para um gênio!
As Capelas dos Medicis constituem importante complexo arquitetônico e artístico. São célebres por exporem obras de Michelangelo. Sua cúpula assemelha-se à da catedral, monumental e exuberante.
A principal peça a ornamentar a Capela dos príncipes é uma grande cripta. Nas paredes estão sarcófagos de seis duques da família. Sobre os túmulos de Ferdinando I e de Cosme II encontram-se duas esculturas em bronze dourado. Na parte inferior, seis escudos de cidades da região originária dos Medicis, Toscana, dão seguimento à ornamentação. A cúpula é adornada por afrescos retratando episódios do Novo Testamento.
Os demais sepulcros, como o de Giuliano, duque de Nemours, e de Lorenzo, duque de Urbino, exibem obras de Michelangelo; as esculturas A Noite e O Dia estão sobre a tumba de Giuliano; O Crepúsculo e A Aurora, sobre a de Lorenzo. Por fim, as Capelas dos Medicis expõem outra obra do Mestre: A Virgem com O Menino Jesus, ladeada pelas esculturas dos santos Cosme e Damião.
Parecia, para leitores atentos, ter eu esquecido do Campanário de Giotto, parte do complexo da catedral, juntamente com o Batistério. O campanário encontra-se ao lado esquerdo da catedral. Não poderia esquecer de mencionar obra tão marcante que só não superou em mim, a visão igualmente encantadora que tive da Catedral de Notre Dame, em Paris, da qual falarei oportunamente.
Embora leve seu nome, como homenagem à sua genialidade, não foi Giotto quem concluiu o Campanário; ele morreu em 1337, quando a construção mal iniciara. Foi terminada por Andréa Pisano; o artista não economizou em nada, muito menos na beleza e na elegância dos seus traços, para legar à humanidade obra tão primorosa.
Eu disse, no início deste capítulo, que Florença é um grande museu, portanto, ainda terei muito a contar. Reiniciarei, falando da Fonte de Netuno, obra de Bartolomeo Ammannati, esculpida de 1563 a 1575, a mando do rei Cosme I. A fonte localiza-se em frente ao Palácio do Velho ou da Senhoria, residência dos Medicis no século XVI. No centro, encontra-se imponente estátua de Netuno sobre uma carroça puxada por quatro lindos cavalos e, nas bordas, cerca de dez magníficas figuras esculpidas em bronze.
O Pórtico dos Lanzi, construção iniciada em 1376 e concluída por volta de 1383, consta de três grandes arcos apoiados sobre pilares de acesso a amplo espaço coberto, onde se encontram diversas esculturas; a que representa o Rapto da Sabinas, obra de Giambologna, de 1583, entre elas.
Ali também está exposta uma escultura em que Perseu exibe uma espada na mão direita e, na esquerda, uma cabeça decepada.
O Palácio da Senhoria ou do Velho tem uma torre de noventa e quatro metros de altura, concluída em 1310. O pátio é local de exuberante beleza; arcos e pilares são decorados por centenas de detalhes; os tetos, cheios de afresco e esculturas.
Uma linda exposição!
O interior do Palácio do Velho possui belas e numerosas salas repletas de obras de arte. O Salão dos Quinhentos, com formoso teto em madeira trabalhada e paredes cobertas por telas de rara beleza, também expõe esculturas de renomados autores; Vincezo di Rossi, escultor das magistrais estátuas de Hércules e Caco e de Hércules e Diomedes, representando lutas corporais, é um desses gênios de um passado de mestres escultores. Michelangelo, com sua obra A Vitória, complementa a galeria de formidáveis artistas que embelezam o Salão dos Quinhentos.
Muitos afrescos tomam conta dos espaçosos salões, tais como A Vitória Sobre os Pisanos na Torre San Vicenzo, de autoria de Vasari, e diversos outros expostos na Sala de Leon X.
Outra sala menor, com teto arqueado, exibe razoável quantidade de afrescos e telas igualmente consagrados. Somem-se a isso, móveis, quadros, esculturas e tapetes forrando as paredes das salas de Hércules, de Ceres e de Gualdrada.
Infelizmente, o pouco tempo disponível impediu-me de conhecer mais desse encantador museu, que é a cidade de Florença, da qual guardo as mais finas recordações.
Faltou espaço em minha agenda turística para visitar outros recantos de soberba magnitude.
Ainda espero conhecê-la melhor. Mais acuradamente. Se me for dada nova oportunidade de voltar à Itália, Firenze não será esquecida no meu roteiro. Estarei lá para complementar o que minha curiosidade reclama e o meu desejo implora.
De Florença, o grande museu a céu aberto por onde andei contemplando a mais fina arte praticada pelos mais elevados gênios da história artística universal, viajei a Veneza, da qual falarei em seguida.
Amanhã, publicarei trecho sobre minha viagem a Veneza. Não perca!