Iluminação e Magia VII - ENTRE DOIS AMORES (OUT OF AFRICA)
À memória de minha querida mãe,
Vera de Almeida Medeiros (vovó Vera) -
_ Mamãe, nitschewo...
Do seu filho, Sílvio.
“Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas.”
Isak Dinesen
“_ I had a farm in Africa...” (“_ Tive uma fazenda na África...”). Com esta frase, é inaugurado o sublime concerto da escritora dinamarquesa Isak Dinesen [1885-1963]. Refiro-me ao livro “A Fazenda Africana” (Out of Africa) —, uma sublime narrativa que, por muitos, é considerada autobiográfica, e que deu origem ao filme “Entre Dois Amores”, grande sucesso cinematográfico de 1985, o qual recebeu 7 Oscars, inclusive o de melhor filme.
O filme é baseado na vida da baronesa dinamarquesa Karen Blixen (Meryl Streep) — cujo epíteto é Isak Dinesen —, que se casou com o irmão (Klaus M. Brandmuer) do seu amante, Dennys Finch-Hatton (Robert Redford). A história passa-se entre 1918 e 1931.
Movida pela aventura, a aristocrata Isak Dinesen deixa a Dinamarca e adquire uma fazenda no Quênia, ao leste da selvagem África. O Quênia de Dinesen é uma espécie de “Paraíso Perdido” (na verdade, na era nenhum paraíso!) dos românticos daquela ocasião, isto é, daqueles que não aceitavam o fim das coisas sem angústia, sem um comportamento melancólico; daqueles que, em contraponto ao final do século XIX, marcado pela desarmonia entre o homem e a natureza - promovida pela consolidação da sociedade industrial -, buscam experienciar as lembranças do Paraíso. Com efeito, trata-se dos insatisfeitos que procuram transformar a vida em lenda. Desse modo, entre a plantação de café, a solidão e as aventuras dos safáris, a baronesa Blixen não necessita de nenhum protetor; ela quer o compromisso, mas não abre mão da liberdade pessoal. Porém, tal ambigüidade encarrega-se de levá-la a experimentar emoções complexas, arrebatadoras. Dennys, um aristocrata inglês, visita freqüente na fazenda, além do prazer de voar e caçar, também apreciava escutar - ao som de Mozart - as histórias narradas por Isak Dinesen. É bom lembrar que Isak Dinesen referiu-se com desprezo à arte do romance, que está sempre a salvaguardar o bem estar dos personagens, sacrificando, dessa forma, a história pelo personagem. Ao contrário disso, Isak Dinesen opunha a arte da narrativa, que sacrifica tudo, exceto a si mesma. A partir daí, o que nós podemos apreciar é a bela história de uma paixão entre Dennys e Dinesen, narrada com bastante cuidado e requinte (no sentido de apontar não tão-somente para a dor ou para a felicidade, mas para a sensibilidade de tolerar todas as contradições da vida), que se encerra quando a plantação de café faliu e o sonho de Isak Dinesen findara-se - de maneira trágica! - com a morte, num desastre de avião, do amante Dennys. Doente, pois contraíra sífilis, devido à infidelidade do marido, Dinesen retorna para a Dinamarca e passa a escrever “A Fazenda Africana”, um autêntico romance épico-moderno no qual a escritora — qual uma Scherazade do século XX — se põe a relatar todas as experiências que vivenciara na África. O conselho explícito que palpita nas páginas desta autêntica pastoral (talvez, a melhor pastoral em prosa de nossa época, do ponto de vista da filósofa alemã Hannah Arendt) nos garante que é possível sobrevivermos às perdas mais traumáticas e, mais que isso, transcendê-las, caso contemos uma história sobre elas. O lugar que essas perdas ocupam na narrativa de Isak Dinesen é indicado na primeira frase da referida pastoral: “_ Tive uma fazenda na África...”. Nesse sentido, a narrativa de Dinesen pode ser considerada redentora, já que a narradora sofre uma “morte exemplar” para poder guardar, para todos nós, a promessa da liberdade espiritual. Com efeito, consoante Hannah Arendt, Isak Dinesen é Scherazade, pois esta promessa é a liberdade - nas páginas das “Mil e Uma Noites” - que Scherazade mostra ao Sultão.
A adaptação do livro para o cinema, conforme comentários do crítico de cinema Rubens Ewald Filho, havia sido planejada nos anos 70 por Orson Welles e David Lean, mas só foi realizada na década seguinte pelo diretor Sidney Pollack. A fotografia do filme é belíssima e a trilha sonora, regida pelo maestro John Barry, é composta de variações sobre o Concerto para Clarinete e Orquestra (K.622), de Wolfgang Amadeus Mozart: o resultado é extraordinário! Em 1985, fez por merecer o Oscar que lhe foi concedida de melhor trilha musical.
Por fim, nas palavras do belíssimo texto biográfico de Judith Thurman (“A vida de Isak Dinesen – Karen Blixen”. RJ: Editora Record, 1982), a experiência africana para Isak Dinesen revelar-se-ia de fundamental importância para a formação da futura ficcionista. “Ela nos demonstra [em ‘A Fazenda Africana’] (...) o que um espírito aberto e sensível é capaz de realizar em meios que muitas vezes lhe são adversos e estranhos”, sublinha Thurman.
Abaixo, segue um belo trecho de “A Fazenda Africana”, obra prima da literatura ocidental:
“Dennys não tinha nenhum outro lar na África além da fazenda, vivia em minha casa no intervalo entre seus safáris, e, quando ele voltava, a casa anunciava o que havia nela; ela falava — como falam os cafezais, quando florescem com os primeiros aguaceiros da estão das chuvas (...) então, as coisas da fazenda todas falavam o que realmente eram (...) e quando Dennys vinha à fazenda, perguntaria: ‘Você tem uma história?’ ”.
Por fim, confesso: não resisto! e apresento – peço licença e paciência aos leitores - um pouco mais da encantatória poética de Isak Dinesen, inscrita nas páginas inaugurais de “A Fazenda Africana”. Confesso, ainda, que esta escritura (talvez um pouco longa, caros leitores), grávida das obrigatórias metáforas, veio a se tornar “um risco” permanente em minha memória:
“TIVE UMA fazenda na África, aos pés das montanhas NGONG.
O equador cruza estes altiplanos, cento e sessenta quilômetros ao norte, e a fazenda situava-se a uma altitude superior a dois mil metros. Durante o dia, sentia-se a altitude e a proximidade do sol, mas as madrugadas e as tardes eram límpidas, e as noites frias.
A situação geográfica e a altitude combinavam-se para criar uma paisagem que não tinha igual no mundo. Não havia ali nada que fosse supérfluo ou luxuriante: era a África destilada através de dois mil metros de altitude, perfazendo a forte e refinada essência de um continente. As cores eram secas e queimadas como as cores de uma cerâmica. As árvores com a sua folhagem leve e delicada tinham uma estrutura diferente das árvores européias; não se formavam em arcos ou cúpulas, mas em camadas horizontais, fazendo com que, altas e solitárias, se assemelhassem a palmeiras, ou então, heróicas e românticas, se parecessem com navios de velas desfraldadas; nas extremidades das florestas tinha-se, além disso, a estranha impressão de que as árvores tremulavam ligeiramente (...) Todas as flores que se viam nas planícies ou nas trepadeiras e lianas da floresta nativa eram diminutas como flores das dunas, à exceção das grandes, maciços e aromáticos lírios, que floresciam nas planícies no início da longa estação das chuvas. As vistas eram imensas. Tudo que se via dava uma impressão de grandeza, liberdade e inigualável nobreza (...) No pino do dia o ar se corporificava sobre a terra, como se fosse uma chama viva; cintilava, ondeava e brilhava como água corrente, espelhava e dobrava os objetos, e criava grandes miragens de Fada Morgana. Lá, naquelas altitudes, respirava-se com facilidade, inalando segurança vital e leveza de coração. Nos altiplanos, acordava-se de manhã e pensava-se: ‘AQUI ESTOU, ONDE DEVIA ESTAR’.”
Acolhendo palavras de Hannah Arendt, brado, finalmente, a minha exclamação admirativa:
_ Bravo, Dinesen! Enigmática, sibila, feiticeira, caçadora de leões e de palavras, plantadora de café, um autêntico paradoxo! Isak, criadora de paradoxos!
SÍLVIO MEDEIROS
Doutor em História e Filosofia da Educação pela UNICAMP.
primavera de 2005