Iluminação e Magia II - OS VIVOS E OS MORTOS
"A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja..."(in Walter Benjamin. Sobre o conceito de história - Tese 5).
"O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?" (in Walter Benjamin. Sobre o conceito de história - Tese 2).
O filme “Os Vivos e os Mortos” ("The Dead", de 1987) é uma adaptação cinematográfica do diretor John Huston [1906/1987] de um dos mais famosos contos do escritor irlandês James Joyce [1882-1941]; trata-se de “Os Mortos” - título da história que pertence à coletânea joyciana de contos intitulada “Dublinenses” (1912) -, escrito em meio a grandes dificuldades financeiras que o ficcionista James Joyce (autor do consagrado “Ulisses” — romance considerado obra-prima do século XX) experimentara durante o período em que residira em Roma. O enredo é simples: nevava na Dublin (capital da Irlanda) do início do século XX. Após uma festa na casa das tias - já idosas - Julia (Cathleen Delany) e Kate (Helene Carrol), as irmãs Morkan, onde se celebrava — com recitais de poesias, cantos, danças e farta ceia — o “Dia de Reis”, o sobrinho Gabriel Conroy (Donal McCann) e a sua mulher Gretta Conroy (Anjelika Huston) retornam ao hotel onde ambos se encontravam hospedados. Desejoso de possuí-la, Gabriel, indaga, então, a razão da transformação ou do profundo silêncio em que Gretta mergulhara a partir de um determinado momento da festa, prolongando-se, inclusive, ao longo de todo o trajeto,isto é, da casa das irmãs Morkan até aquele momento, no hotel. Gretta então lhe revela que, ao final da festa, quando muito dos convidados já haviam se retirado, ouvira a voz de um barítono entoar uma triste ária chamada "The Lass of Aughrim" ("A Moça de Aughrim"). Aturdido, Gabriel pergunta à Gretta: “_ Que há com essa música? Por que a faz chorar?” Aos prantos, Gretta responde ao marido: “_ Estou pensando em alguém que, há muitos anos costumava cantar essa canção (...). Um rapaz que conheci (...). Chamava-se Michael Furey. Cantava sempre essa canção: "The Lass of Aughrimm". Era muito sensível...” E assim, Gabriel descobre a antiga paixão que sua mulher nutrira na juventude por um pobre rapaz (trabalhava numa companhia de gás) que se suicidara por igualmente amá-la. O fato trágico consumara-se em virtude da ida, por aquela ocasião, da jovem Gretta para um internato. Na véspera da partida, Gretta avistara o pobre rapaz num canto do jardim, tiritando de frio. “_ E não mandou voltar para casa? _ perguntou Gabriel.” “_ Implorei que o fizesse, disse que a chuva ia matá-lo. Respondeu que não queria viver. Lembro-me tão bem de seus olhos! Tão bem! Estava parado perto do muro onde havia uma árvore...”
Tom sepulcral. Imagens do passado perpassam velozes, em relampejos. Desfecho lúgubre, e o mundo desaba no abismo... Gabriel, após ouvir a história da sua mulher, medita melancolicamente sobre a razão da existência, na qual jogamos nossos destinos. Conto e filme encerram-se com um conjunto de epifânicas (Epifania = súbita manifestação espiritual) palavras, o qual expressa o pensamento de Gabriel, no qual Eros (a força do desejo) é substituído por Ágape (amor espiritual): “Sim, os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey. Amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis. Sua alma [de Gabriel] desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente — como se lhes descesse a hora final — sobre todos os vivos e os mortos.”
Com estas palavras, parece-me que, na escritura joyciana, o tempo em nós se traduz na história, ou melhor, na escritura de histórias. Experienciar epifânico: súbita revelação interior que dura, apenas, um instante, com efeitos de luz e brilho; um segundo fugaz apenas, e nada mais... Conto e filme relampejam, festa da Epifania; ambos fosforescentes estéticas da escritura e da imagem. Com base numa seleção ou coletânea de fatos insignificantes do dia-a-dia, a escritura epifânico-joyciana fixa a impertinência do instantâneo no simples cotidiano, rumo a uma dimensão cósmico-intemporal... e os mortos ressuscitam na escritura joyciana; igualmente ressuscitam nas imagens arquitetadas por meio da genialidade do cineasta John Huston, que tão-bem transpôs as epifânicas páginas de “Os Mortos” para a súbita iluminação da magia técnico-cinematográfica. Em 1987, já muito doente, o cineasta irlandês John Huston dirigiu “Os Vivos e os Mortos” de uma cadeira de rodas. Sua filha, a atriz norte-americana Anjelica Huston (a personagem Gretta), viveu parte da infância em Galgway, oeste da Irlanda, mesmo local de origem da personagem Gretta e também da mulher do escritor irlandês James Joyce, isto é, Nora Barnacle. John Huston realizou 41 filmes, dentre eles, sucessos notáveis, como: "Relíquia Macabra" (1941); "O Tesouro de Sierra Madre" (1947); "Freud, além da alma" (1963); "À sombra do vulcão" (1984).
“Os Vivos e os Mortos” foi indicado para 2 Oscars, além de ser exibido post-mortem no Festival de Cinema de Veneza.
Nota: os diálogos colhidos de “Os Dublinenses”, de James Joyce, foram traduzidos por Hamilton Trevisan. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
PROF.DR.SÍLVIO MEDEIROS
primavera de 2005