Iluminação e Magia I - A LIBERDADE É AZUL

Este slogan: “Solidão que não é doença que a medicina trata; solidão que é coisa humana e tem serventia...”. Ou ainda, um dos slogans do diretor do filme "A Liberdade é Azul" (1984): “O homem sempre viveu o mito do amor. Para muitos, amar significa viver sem liberdade, e a coisa mais importante do mundo é a liberdade, sem ela ninguém consegue viver...”; talvez ambos os slogans (ou ambos incompletos: ausência de outros face à completitude do filme?!) traduzam o enredo dessa bela história de amor narrada com sensibilidade pelo cineasta polonês Krzysztof Kieslowski.

Uma vida comum é alterada pela tragédia: Julie (Juliette Binoche), famosa modelo, após um trágico acidente de automóvel, perde a família: o esposo — um maestro de fama internacional — e a filha pequena. A partir daí, após uma tentativa de suicídio frustrado, Julie, experimentando a dor da perda — entre outras dores: a mãe, insana, está internada num asilo —, descobre que o ex-marido a traíra, que a amante do marido está grávida...

Em meio a tudo isso, tendo por base a dura realidade, Julie volta a se interessar pela vida ao se envolver com uma obra musical inacabada do marido. Com isso, Julie sublima o sofrimento, desvia a atenção para novas coisas, aprende a contemplar o mundo por outras perspectivas.

A comovente trilha sonora “Song for Unification of Europe” (“Concerto ou Canção para a Unificação da Europa”), com inúmeras variações, percorre toda a projeção do filme. O modo como o filme se desenrola, as partes dramáticas acompanhadas ao som do coral da Orquestra Sinfônica e Coral da Thecoslováquia, cujas letras da melodia são extraídas — e reelaboradas — das Epístolas Paulinas (I Coríntios 13), do Hino à Caridade... “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, seu eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa”: tudo é de uma beleza incomum. É preciso ressaltar que nas variações do “Concerto para a Unificação da Europa”, as letras bíblicas adquirem outros sentidos, como por exemplo nestas passagens: “Ainda que eu falasse a língua dos anjos, seu eu não tivesse o amor, eu seria como um bronze que soa... seu eu não tivesse o amor, eu não seria nada. O amor é paciente, é pleno de bondade. O amor tolera todas as coisas, ele aspira todas as coisas. O amor não morre, jamais. A fé, a esperança e o amor... o maior dos três é o amor.” Enfim, trata-se de uma das mais belas trilhas sonoras que o cinema já rendeu.

O filme é confeccionado por meio de cacos de existências, de pedaços de vidas que vão se juntando e formando uma junção perfeita. Durante os trabalhos de conclusão da obra inacabada do ex-marido, Julie redescobre, dolorosa e paradoxalmente, o mundo: família, amizade, amor, religião, crenças... são armadilhas. Descobre que sem a liberdade ninguém consegue viver.

Há muito tempo um filme não me tocava tão profundamente... talvez pelo fato de Kieslowski traduzir, num quadro luminoso, o aprendizado do grande amor que todos nós, os mortais, desejamos e do qual Herbert Viana fala em sua música; todos nós esperamos e temos uma incrível pressa de encontrá-lo, e como Viana acentua na canção: “Eu tô esperando, vê se não vai demorar...”

"A Liberdade é Azul" recebeu 3 indicações ao Globo de Ouro. Ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza (1993). Ganhou o Cézar de Melhor Atriz (Juliette Binoche). O filme, do consagrado diretor polonês, é maravilhoso, é uma exaltação ao amor, à liberdade. É o primeiro filme da trilogia das cores ("A Igualdade é Branca"; "A Fraternidade é Vermelha") de Kieslowski, dedicada às cores e aos ideais da Revolução Francesa (1789). O filme deve ser conferido, pois, com ele, aprendemos, belamente, que a liberdade é lindamente azul.

PROF.DR.SÍLVIO MEDEIROS

primavera de 2005