A época da inocência, de Martin Scorcese

A época da inocência, de Martin Scorcese

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Qual o custo que suportamos por nossas escolhas? Essa (muitas vezes) inoportuna pergunta foi posta pela escritora norte-americana Edith Wharton (1862-1937) em um romance muito mais sério do que o título dulcificado pode supor. Uma questão colocada em contexto histórico muito diferente do momento presente, ainda que permanente. Era um tempo em que vínculos de dependência limitavam e ditavam escolhas. A existência podia ser um claustro. Essa vida abadenga não era monopólio de gênero. A todos afetava.

No núcleo do problema questão freudiana relativa aos limites suportáveis da monogamia, tanto de afeto, quanto de libidos minguadas. O problema é que Freud desafiava a tudo e a todos ao mesmo tempo em que vivia (ao que parece) a monogamia tradicional burguesa com Martha Bernays, companheira de toda a vida. “A época da inocência” é um romance datado, fins do século XIX, há uma versão cinematográfica dos anos 30 e o remake do Scorcese de 1993. É desse último que trato. Será que ainda somos prisioneiros de nossas escolhas? O que nos falta? Coragem? O que nos sobra?

“A época da inocência” é ambientado em uma Nova Iorque de moral vitoriana (quem diria) no espaço seguro de famílias enriquecidas. Reproduzia-se a nobreza europeia. Sessões de ópera (o filme abre com excerto do ‘Fausto’), jantares (com exibições de pratos decorados, produzidos por autêntico ‘garde-manger’), passeios no campo, bailes, danças, fricotes, fofocas, badalações. Fuxica-se o tempo todo. Vivia-se na superfície das banalidades e das preocupações com futilidades. Por baixo dessa extravagância uma violência atingia a todos. Eram vítimas e ao mesmo tempo algozes das próprias vidas. Todos se controlam. Simulam uma felicidade que a abastança econômica parece garantir. No fundo, inseguros e temerosos.

Newland Archer (Daniel Day-Lewis) é um advogado, jovem, de uma família rica e influente. Prepara-se para se casar com May (Winona Ryder), do mesmo extrato social, a me valer de uma expressão de muito mal gosto. Poucas expressões são mais preconceituosas do que essa. Que horror! A mãe de May é protagonizada pela sempre elegante e exuberante Geraldine Chaplin, filha do genial inglês. Na vida real, o pai de Geraldine, o eterno Carlitos, denunciou recorrentemente o descaso das classes ditas altas pela vida de trabalhadores e desiludidos.

Archer reencontra Ellen (protagonizada por Michelle Pfeiffer), amor de infância, então em processo de divórcio com um conde europeu. Archer é indicado para atuar no divórcio. Esse reencontro mina (e de algum modo explode) a paz (suposta) de Archer. Digo suposta justamente porque desconfio que nenhuma explosão de amor e de desejo seja fortuita. Há sempre um desejo e uma carência que nos impulsiona. Uma questão de autorreferência. Nos vemos no ser amado, que de sujeito torna-se objeto. Não nos culpemos. Somos humanos. Archer está dividido. Tem que optar entre o convencionalismo e a tradição (substancializados em May) e a irreverência e a autenticidade (substancializados em Ellen). Para complicar, May e Ellen eram primas. O que fazer?

Esse triângulo é a base narrativa desse belíssimo filme. A deferência para com a época é rigorosa. Porque não havia óperas em Nova Iorque no momento histórico do filme as cenas da ópera foram gravadas em Philadelphia. Scorcese e seu fotógrafo exploraram justaposições de luzes e nuances. Há uma sequência antológica, de fim de tarde, com Michelle Pfeiffer junto ao mar, com barco e um farol ao fundo. Um pouco antes da cena final essa imagem é retomada, ainda que em Paris, em um “arrondissement ” elegante, que antecede ao desfecho do filme. Quem gosta de cinema não deixa de lembrar da sequência da escolha de Francesca, em “As pontes de Madison” com Clint Eastwood e Maryl Streep. Cena dramática. Quantos de nós já vivemos essa aporia em nossas vidas?

Archer é pudico. É sincero, quer viver autenticamente, e se dispõe a enfrentar a tradição da qual é fruto. Ainda que o roteiro seja nuclear e muito simples (e por isso tão bem feito) dois contratempos impedem que revele à May (então esposa) que seus olhos e interesse estão na prima (Ellen). Esta última é destemida, enfrenta todas as maledicências que jogam contra ela, acusada de adúltera e de pouco ortodoxa com o marido. Ellen, a corajosa, pode curvar-se à moral que tanto condena. Archer, o contido, pode desafiar o convencionalismo que tanto defende. O que ocorre quando posições se invertem, isto é, quando a rebeldia cede às convenções e quando o tradicionalismo se torna iconoclasta, destruindo imagens. Curvam-se! Queimam o que adoraram, e adoram o que queimaram! É o que enseja o “mise-en-scène” dessa sofisticada fita, que vale também pelos figurinos.

“A época da inocência” ´é um filme que nos faz refletir sobre nossas escolhas. Para alguns pode falar que sempre é tempo para ousadias e experiências, porque a vida é mudança constante. E para todos, pode soar como aquele verso do grande poeta romântico alemão (Goethe) para quem nunca somos enganados; somos nós que enganamos a nós mesmos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 07/06/2020
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