Vestígios do dia, de James Ivory

Vestígios do dia, de James Ivory

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Stevens (Anthony Hopkins) é o mordomo eficiente cuja vida foi obcecadamente dedicada ao patrão (que chamava de My Lord, Meu Senhor), um aristocrata inglês (Lord Darlington, protagonizado por James Fox). O aristocrata era um filogermânico, simpatizava timidamente com o nazismo. Lia o “Minha Luta” (Hitler) e despediu duas empregadas judias, que em um primeiro momento tomou como duas moças alemãs. Trabalhariam na cozinha, porém Darlington pretendia aperfeiçoar seu alemão, por isso as admitiu, situação que reverteu. A descoberta de que eram judias motivou a perseguição. Tenho a impressão que o aristocrata se ressentia (homoafetivamente) de um soldado alemão, contra quem lutou e a favor de quem queria então atuar. Pensava que era seu dever ajudar a Alemanha, destruída pelo Tratado de Versalhes, imposto por ingleses e franceses, os vencedores da guerra de 14-19. Talvez se sentia culpado pela morte do soldado alemão que carinhosamente lembrava.

Miss Kenton (representada por Emma Thompson) é a governanta, timidamente apaixonada pelo mordomo, com recíproca verdadeira. O mordomo, porém, é frio, distante, formal, insensível. Essas características (frieza, distância, formalidade, insensibilidade) lhe custam um distanciamento com a vida real e com a autenticidade que deve reger a existência. É um alienado, no que essa expressão carrega de ignorância para com a própria circunstância. Um radical. Um perfeccionista que media a distância entre talheres e a margem da mesa. Passava com ferro os jornais que seu patrão leria. Nem o falecimento de um parente próximo o afastaria do dever de bem e melhor servir. O ambiente do castelo era medonhamente vitoriano, como vitoriana também era a moral que circundava o lugar. Não se falava de sexo, falava-se de fatos da natureza...

Esse é o núcleo de “Vestígios do dia”, romance de Kazuo Ishiguro. O autor nasceu em Nagazaki. Vive em Londres desde 1960. Levou o Nobel de literatura em 2017. A comovente narrativa do mordomo foi levada para o cinema em fita dirigida por James Ivory, um cineasta cujos primeiros filmes sempre tratavam da Índia. Em “Vestígios do dia” esse interesse é retomado na cena na qual o pai do mordomo (que era um mordomo também) ao explicar a dignidade que se espera dos mordomos, narrava a cena de mordomo que surpreendeu um tigre em uma sala de jantar, matando-o, discretamente, como se um tigre em uma sala de jantar fosse um fato comum. Humor inglês. Very funny.

A tensão que sustenta a narrativa, creio, predica na tardia compreensão de que se dedicou a vida a um falso ideal. Pode ocorrer com cada um de nós. O uso dos flashbacks pode permitir essa compreensão. Com a morte do aristocrata - - que antes passou pela humilhação da denúncia de ser um simpatizante do nazismo - - e com a venda da propriedade para um norte-americano o mordomo questionou as opções que fez na vida. É visivelmente um arrependido. Amargurado. Porém, da amargura não conseguiu capturar uma redenção. Fenecerá na amargura, ainda que talvez não se dê conta da aflição. É o estigma da castração existencial vitoriana.

Permanecendo no serviço da casa - - em torno da qual circulou e valorizou sua vida - - o mordomo ainda pretendeu resgatar a governanta, para quem foi incapaz de demonstrar afeto. Não conseguia. Talvez seja tarde demais. Nesse caminho, negou que trabalhou para o patrão filonazista. Como Pedro negou a Jesus três vezes antes do cantar do galo (Marcos, 14), Stevens negou seu passado. A exemplo de Pedro, agonizou, justamente porque renegou a uma fidelidade incomensurável. Stevens, a contrário de Pedro, não chorou. Stevens é inglês, de quem se espera uma total indiferença para com sentimentos e representações de sentimentos. Não chora. Não ri. No mundo dos sentimentos (que concebe por sensações) somente se permite viver o frio, ou o calor. Amar, nem pensar.

“Vestígios do dia” é um filme inglês, em todos os sentidos. Atores ingleses (Hopkins, Emma, e também o jovem Hugh Grant), além da filha de Hopkins, no curto papel de Abigail (que é seu nome verdadeiro), uma ajudante de cozinha. Carros ingleses transitando pela mão inglesa. Exceção do norte-americano (Cristopher Reeve, antes do gravíssimo acidente) e do diplomata francês (protagonizado por Michael Londsdale, que vemos em “O Nome da Rosa”).

O tema é essencialmente inglês: o conservadorismo das classes dominadas que historiadores ingleses como Edward Palmer Thompson e Eric Hobsbawn procuravam explicar à luz de um sentimento atávico de comprometimento com a tradição. Em seu pequeno gabinete de trabalho o mordomo rejeitava as flores que a governanta afetuosamente lhe trazia, justamente porque preferia as coisas como sempre estiveram. Nada pode mudar. É o simbolismo de uma compreensão de mundo centrada em valores hierárquicos. Lia romances, não pela aventura estética e emocional que leituras permitem. Pragmático, justificava as leituras no objetivo de aprimorar seu comando de língua inglesa, para melhor servir, naturalmente.

“Vestígios do dia” é um filme de rara sensibilidade. Somos transferidos para o universo hierático e sagrado de um mordomo e de uma governanta, cuja existência somente fazia sentido no plano dos desígnios do padrão, ainda que doce e pretensamente atencioso. É a lógica tradicional da estrutura social e moral inglesa, onde não há senhor sem terra, e nem terra sem senhor. Isto é, há sempre um senhor, cujo poder se assenta na tradição e na suposta ilustração. Desafiar essa lógica é colocar-se à margem de estruturas reconhecidas e definidas. O mordomo não enfrentou esse desafio, que colocava em forma de destino. Pagou com a inautenticidade da existência. Seu ideal supremo foi justamente a falta de ideais, que justificava no resignado ideal de bem servir.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 10/05/2020
Reeditado em 10/05/2020
Código do texto: T6943063
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