Um homem de sorte, de Bille August

Um homem de sorte, de Bille August

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“Um homem de sorte”, de Bille August, é um filme que explora os efeitos perversos de uma rígida criação, realçados por uma inclemente culpa. É o tema do martírio do filho que foi martirizado pelo pai. Um script comum nas tipologias freudianas. Uma narrativa real e recorrente de rebeldia de filhos de clérigos, que repudiam a hipocrisia paterna. O pai amoroso do púlpito e da congregação é, sabe bem seu filho, o pai tirano e castrador do ambiente familiar. Ao mesmo tempo em que aconselha e orienta seus seguidores, atemoriza e intimida esposa e filhos. Ora na capela. Chicoteia na sala. Quem é o pai? Essa é a tensão que o filme capta, com muita cautela porque, sabemos, o assunto não é simples.

Ao mesmo tempo, “Um homem de sorte” trata da firmeza e do caráter de uma judia secularizada. Uma mulher madura, firme, cuja atitude resoluta contrasta com a do homem que amou, o imaturo filho do pastor protestante. Direta, objetiva (como diretos e objetivos são todos os personagens) a judia secularizada revela a tensão que desdobra do estranhamento. É estranha à maioria protestante, que a reconhece pelas roupas. Porém, é absolutamente familiar consigo mesma. Sabe quem é. Sabe o que pode. Por isso, o respeito que provoca, na família e nas intervenções que faz na vida da então pacata cidade.

Nessa aproximação cênica, ao radicalismo luterano obscurantista da Europa setentrional opõe-se o secularismo iluminado de uma elite judaica, com suas conexões com o resto do continente. Peter Andreas Sidenious, ou Per (o papel é de Esben Smend) é o atormentado filho do clérigo. Jakobe Salomon (protagonizada por Katrine Greis-Rosenthal) é a judia avançada e resolvida. Jakobe apaixona o espectador. Per, no entanto, desconcerta. Provoca sentimentos dúbios. Encanta, mas também decepciona. A si mesmo, ao espectador, a todos, com exceção de Jakobe, cuja compreensão da natureza humana é rara, inexistente talvez até entre os santos. Que paciência! Ao mesmo tempo, Jakobe é ação e movimento, na hora certa, certeiramente.

“Um homem de sorte” foi dirigido por Bille August, um realizador dinamarquês extremamente competente, habilidoso e cauteloso na exploração de tensões familiares de tom intergeracional. Bille August, não nos esqueçamos, dirigiu “A casa dos espíritos”, baseado no romance de Isabel Allende. “A casa dos espíritos” e “Um homem de sorte” são filmes que exemplificam com excelência narrativas de fundo psicológico, em contraste com a objetividade da política e dos propósitos econômicos, interesseiros e perversos.

A narrativa se passa na Dinamarca do início do século XX. O país ainda é agrícola, pré-industrial, há vários nichos de pobreza. Per é filho de um pastor radical, com quem não se dá bem. Uma relação marcada pelo ódio. Sente-se um sem-teto dentro da própria casa. Aprovado para estudar engenharia em Copenhague deixa o lar. Segue viagem, amaldiçoado pelo pai. Seu irmão mais velho também é clérigo, vive na capital, e a relação entre ambos é também de aversão e aborrecimento.

Per conhece uma rica família de judeus, seduzindo Jakobe, a filha mais velha, preparando-se para o casamento. Ao mesmo tempo busca investidores para um projeto modernizador que desenvolvia, de aproveitamento das ondas e dos ventos, para produzir energia limpa e barata e incrementar a navegação. Era um visionário, cujos projetos encantavam pela ousadia. No entanto, obstinado e arrogante, pode colocar tudo a perder.

A personalidade de Per é marcada pela culpa que carrega ao renegar os valores da família. Essa responsabilidade moral que se impunha é marcada ao longo do filme pela resistência que oferecia em aceitar um relógio de bolso que o pai lhe deixou, no dia em que partiu. A mãe exerceu papel fundamental no conflito do filho com o pai. Tem-se a impressão de que não era uma mediadora. Apoiava a tirania doméstica. Também freudianamente, pode-se arriscar o palpite de que essa triangulação forjou o comportamento possessivo de Per com as mulheres. É o que ocorreu com a garçonete (que o ajudou), com a filha de um pastor (que o resgatou) ou com a própria Jakobe. Per ainda se aproximou da irmã de Jakobe. Repare o espectador na forma como Per se dirigia a elas: você vai ser minha.

Uma fotografia exuberante. Tem-se a impressão de que estamos (uma boa parte do filme, que é longo) no famoso quadro de Caspar Friedrich, “Caminhante sobre o mar de névoa” (1818), exemplo fulgurante do romantismo na pintura. A música é discreta. Os diálogos e as cenas e sequências tornam desnecessária uma música mais marcante. A seriedade luterana é retratada nos figurinos mais escuros, em contraste com o colorido das reuniões da família judaica. À suntuosidade da elite (há sempre um piano nos salões, o irmão de Jakobe refastela-se com caviar e champagne) o diretor opõe a miséria de crianças famélicas e doentes. O quarto onde Per vivia é exemplo dessa adversidade.

Jakobe circula livremente nos dois ambientes. É seu grande trunfo. Per vê-se diminuído no meio da ostentação e percebe-se muito superior nos ambientes mais simples, que é seu meio originário. É sua grande derrota. Cabe ao espectador comprovar se, de fato, como diz o título, seria o personagem central um homem de sorte. Isso talvez dependa de como cada um de nós avaliemos a redenção e a felicidade. E cabe ao espectador também avaliar se Per era mesmo um gênio. Isso talvez dependa de como cada um nós avaliemos o sucesso. Pode-se concluir com Maquiavel para quem a vitória demande a virtude e a sorte. Esse olhar pode explicar esse misterioso personagem, a quem sobrou sorte, mas a quem talvez tenha faltado virtude.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 04/05/2020
Reeditado em 10/05/2020
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