Ray, de Taylor Hackford

Ray, de Taylor Hackford

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Em algum ponto da década de 1980 eu presenteei minha mãe com um LP de Ray Charles, “I can´t stop loving you” (não consigo parar de te amar). Era o tempo dos LPs. Não me recordo da capa. Tenho alguma reminiscência da dedicatória. Eu reproduzia o título da música principal, em sua forma traduzida. A música batia diretamente no sentimento que filhos têm pelas mães. No meu caso, especialmente, a doçura de minha mãe sempre foi estímulo para que eu tentasse me tornar uma pessoa melhor. Eu tento. Não sei se consigo.

“I can´t stop loving you” é canção que deve ser compartilhada, sob momento de fortíssima emoção, com imaginária e ao mesmo tempo real Imperatriz da Mancha, porque, como na hipótese de Dom Quixote, não há fronteiras entre quimera e vida real. Essa fronteira se dilui definitivamente com a emoção musical. Com a música conversamos com o divino que acreditamos, recuperamos o humano que representamos e nos encontramos como somos, porque simplesmente também somos o que queremos ser.

Mencionada relação de filho com mãe, que é menos freudiana e muito real, é ponto que o diretor Taylor Hackford melhor explorou na cinebiografia de Ray Charles, estrelada por Jamie Fox, no papel do músico genial. O filme é de 2004. Taylor, que também havia dirigido “O Advogado do Diabo”, inteligentemente capturou o que mães significam para seus filhos: a lágrima materna é a melhor bússola que temos, é o que lemos no túmulo de Ana de Assis, a injustiçada esposa de Euclides da Cunha. Uma história à parte, que merece muita reflexão e algum revisionismo. Penso que a história foi implacável com Ana de Assis, ao mesmo tempo em que levou Euclides para o Olimpo.

Hackford apresenta uma chave explicativa para a genialidade de Ray Charles, que resulta também do estímulo externo. Os desacertos da vida de Ray Charles mais contribuem para a compreensão de seus acertos e para uma melhor apreciação de sua virtuose. A luta contra as drogas, o enfrentamento do racismo, a tentativa de acerto familiar, o sentimento de culpa pelo que sucedeu com o irmão e a plena sensação de que era gênio, e que o mundo a ele deveria se curvar, são os elementos desse filme vencedor de Oscar, que não pode deixar de ser apreciado por todos quantos nos intrigamos pelos dramas e alegrias da experiência humana. E que também por quem nos apaixonamos pela música, que tudo torna doce, palatável e existencialmente comensurável, na medida exata ou aproximada das possibilidades humanas. Ao mesmo tempo em que tudo parece impossível, por isso mesmo, tudo é possível. Creio ser essa, entre outras, a mensagem desse primoroso filme, que relata a trajetória desse primoroso músico.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 02/05/2020
Reeditado em 02/05/2020
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