Parasita, de Joon-ho Bong

Parasita, de Joon-ho Bong

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Assisti “Parasita”, do cineasta coreano Joon-ho Bong, como um filme sobre luta de classes. São duas famílias. Uma família rica. Pai (jovem), mãe (jovem) e dois filhos, que vivem ostensivamente em uma mansão. Decorada com motivos e adereços da cultura milenar coreana, eventualmente saturada de “walk-talkies” ou de uma tenda de acampamento, importada dos Estados Unidos, como frisava a jovem mãe, a mansão era rodeada por um idílico jardim.

A outra família, pobre. O pai, a mãe e dois filhos. Encontravam algum dinheiro em caixas de pizza que dobravam. O recebedor do serviço (uma moça com uniforme laranja) reclamava do serviço, e descontava do pagamento o elevado percentual de caixas que julgava mal montadas. Uma mistura de mais-valia com assédio. Desesperados por uma rede de “wi-fi” que buscavam de vizinhos, tem-se na obsessão com o celular a perfeita representação metafórica da fetichização da mercadoria. Atribui-se ao aparelho celular um valor transcendente. Podia faltar comida, mas as redes de comunicação deveriam continuar. Desespera-se com o menino buscando um melhor ponto do porão onde viviam, para alcançar uma rede de uso livre.

A família rica (do sr. Park) vive os limites do desconforto da riqueza. Convivem com problemas típicos que ocorrem onde problemas de sobrevivência não há. Os instrutores dos filhos (de inglês e de arte), a vigilância e a desconfiança para com os empregados, a rede ampla de amizades coadjuvantes. Representam uma Coreia do Sul bonita, glamorosa (ouvem ópera) e deliciosamente perfumada. O casal divide a cama, e um pijama idêntico. Chinelinhos assépticos circulam pela casa, naqueles pezinhos de porcelana. O marido e a mulher, no entanto, não se bastam, e ambos, de seus modos, esperam algo intangível, no momento em que raramente se entregam em carícias.

A família pobre (do sr. Ki-Taek) vive os limites do desconforto da pobreza. Convivem com problemas de sobrevivência. Vivem em um gueto, que não resistiu a um vazamento das tubulações de esgoto. Alimentam-se precariamente, convivem com insetos, e dependem de dedetização pública. Representam uma Coreia do Sul pobre, cheia, feia e malcheirosa. Os destinos das famílias se cruzam. Todos os membros da família do sr. Ki-Taek, por meio de vários artifícios, alguns até maquiavélicos, passam a trabalhar para a família do sr. Park.

Há referências à Coreia do Norte, na voz de uma empregada que antecedeu a chegada da família do sr. Ki-Taek. Porém, mais do que uma alusão à divisão das Coreias, há a divisão da Coreia do Sul em seus próprios limites internos, divisão que é mais sórdida e perversa do que qualquer divisão política. Tem-se uma divisão econômica, que é intransponível.

Há também referências à traumática guerra que os coreanos lutaram contra o Japão. A esposa da família rica projeta a distribuição das mesas em uma festa, do mesmo modo que os navios coreanos se posicionaram na guerra que a personagem explicitamente menciona. O sr. Park é um jovem novo-rico, como se lê que há muitos no oriente. O sr. Ki-Taek é um desempregado recorrente entre trabalhadores que não foram alcançados pela revolução tecnológica.

Na lógica do diretor, sem lidar aqui com pretensões mais filosóficas, os ricos seriam ingênuos e os pobres seriam golpistas e trapaceadores. A sra. Park ingenuamente acredita em tudo que lhe falam. A sra. Ki-Taek, e os demais da família, parecem planejar um embuste o tempo todo. Em algum momento, o não planejamento passa a ser o planejamento mais eficaz. A lógica do diretor parece ser ironicamente burguesa e recatada e bem-comportada, como se verifica na cena que sugere que o sr. Park faria amor com sua mulher. Constate o que o casal quer, e como fazem. Pouco se vê, e essa pudica iconografia vitoriana adensa o charme clássico da narrativa.

Há uma questão olfativa que ronda o filme. Na estética do diretor, os pobres cheiram, e cheiram mal. O menino do casal rico detecta que os membros da família que os serve têm o mesmo cheiro, ainda que não soubesse que se tratavam de membros de uma mesma família. Um forte desejo de vingança, ainda que inconsciente nas personagens (parece-me) conduz o roteiro ao inesperado fecho. Retoma-se na parte final a lógica choramingona e sangrenta da melosa dramaturgia japonesa. Akira Kurosawa desmentiria a premissa.

Há uma questão interessante relativa ao sentido e à aplicação do título do filme, se correta a tradução do original. O parasita é o organismo que vive em outro organismo ou que vive de outro organismo, de onde obtém alimento e em quem causa graves danos. No filme, quem é o parasita? O sr. Park que não permite que serviçais cruzem o limite de qualquer intimidade, ou o Sr. Ki-Taek que segue fins e não se importa com os meios?

De acordo com um teórico húngaro (Lukács), o relativismo moderno protesta contra a objetividade dos critérios de valor de nome, inclusive, da complexidade da vida. Isto é, os fenômenos da vida são tão complicados e contraditórios que não se pode esquematiza-los com facilidade, sob pena de violenta-los. Seria uma advertência para com o esquema interpretativo que aqui utilizei, como chave de compreensão desse intrigante filme. Esforcei-me, mas não vejo outra forma de compreender como conviveriam duas famílias, tão diferentes, na Coreia do Sul e ou em qualquer outro lugar. Não pode haver ajuste entre quem vive no limite da adversidade e da penúria com quem se aborrece com a plenitude do consumo. O convívio entre esses extremos exige um pacto, que se não for construído se revolve apenas no rancor.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 17/01/2020
Reeditado em 17/01/2020
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