Tom boy
Tomboy, filme escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma, é um filme belo e ao mesmo tempo repleto que temas importantes e polêmicos que tivemos a oportunidade de discutir em sala de aula, pois independentemente da diversidade dos temas das aulas, a questão de gênero e sexualidade sempre aparecia.
O filme trata da história de uma menina de dez anos, Laure (Zoé Héran), que tem comportamentos e maneiras de se vestir tipicamente relacionadas ao gênero masculino. A mãe de Laure está em período final de gestação, o pai é bastante atencioso, apesar de trabalhar fora o dia inteiro, e a irmã menor, Jeanne (Malon Levana), é um vórtex de animação e carinho para com Laure.
O enredo inicia quando a família muda-se para um novo condomínio em uma nova cidade. Logo nos primeiros dias, Laure decide sair do seu apartamento para conhecer o condomínio e os novos vizinhos. Nesse momento conhece Lisa (Jeanne Disson), uma menina do bloco ao lado, para quem se apresenta como Mickael. Neste momento do filme, o nome da protagonista não havia sido pronunciado nenhuma vez, o que deixa o espectador com a dúvida se, de fato, Laure é do sexo feminino ou do sexo masculino.
Lisa, então, leva Laure (identificado como Mickael) para conhecer o resto da turma. Lisa tem um papel fundamental no enredo: para ela foi feita a mentira que dá origem a toda a trama do filme; ela serve como ponte para a aceitação do novo membro no grupo (isso fica explícito quando Lisa permite que “Mickael” ganhe dela em um jogo de corrida para que os outros o respeitem); e, por fim, surge entre Lisa e Laure um afeto mútuo o qual complexificará o desenrolar dos fatos (e, por quê não, a conservação da mentira).
As cenas que se seguem são, em sua maior parte, tentativas de Laure para garantir que os amigos acreditem na sua mentira por meio de práticas e posturas semelhantes às dos meninos: jogar bola, cuspir no chão, tirar a camisa, etc. Tais cenas nos fazem refletir sobre a relação que existe, ou que a sociedade “fez existir”, entre comportamento e sexualidade. O título do filme “TOMBOY” é uma expressão usada para designar aquelas pessoas do sexo feminino que, assim como Laure, tem hábitos que foram socialmente determinados como próprios do gênero masculino. No entanto, ao longo dos anos, criou-se um senso comum em torno da expressão, o qual passou a relacioná-la fortemente com o lesbianismo. Para nem falar do preconceito com o lesbianismo introjetado nesse senso comum, atento para a visão que conecta as TOMBOYs às lesbicas, reduzindo a concepção de sexualidade a um conceito meramente comportamental. Nesse ponto, o filme foi bastante feliz em mostrar um conceito que abordamos durante as aulas, que comportamento e sexualidade são coisas distintas.
Outra reflexão que podemos fazer baseada no filme também nos debates que tivemos em aula é a de que, assim como comportamento não é sexualidade, sexualidade não é caráter. Lisa era uma criança absolutamente carinhosa com a mãe, atenciosa com Jeanne e confidente do pai. E isso reforça que os estereótipos criados pela sociedade são só repletos de preconceito. Inúmeras momentos do filme são reservados às cenas de conversa entre a mãe e a filha, ou de brincadeiras entre as irmãs (quando Jeanne dança balé enquanto Laure toca piano, quando ambas estão no banho e uma lava os cabelos da outra ao mesmo tempo em que fazem penteados esquisitos, quando Laure pousa para Jeanne desenhá-la, etc.).
O filme mostra a naturalidade com que a escolha de uma criança acontece, e nos coloca diante dos problemas de todos aqueles cuja sexualidade não segue uma heteronormatividade monogâmica. A todo momento o filme perpassa pela temática que discutimos muito durante as aulas: sexualidade não é caráter.
Ao descobrir a mentira da irmã, mostra-se confusa por querer contar à mãe, mas prudentemente espera para conversar primeiro com Laure. Após algumas barganhas de Laure (“Se você não contar para a mãe eu te levo todos os dias para brincar junto com a gente”), Jeanne decide não contar e dar suporte para a irmã. Claro que a barganha indica que, sim, Jeanne é uma criança, mas acima de tudo, mostra o grau de pureza da menina ao não enxergar grandes problemas no fato de Laure ser “Mickael” (ou o contrário). Jeanne, quando a verdade vem à tona, se mostra madura o suficiente para estar do lado da irmã, lhe dando atenção e carinho, quando até mesmo a mãe a havia feito passar por uma situação de exposição. Livre de estruturas mais rígidas, Jeanne é o exemplo de como deveríamos lidar com os seres humanos, seus desejos, seus anseios e suas limitações.
TOMBOY me encantou porque foi capaz de mostrar de uma forma simples os preconceitos velados que insistimos em legitimar e naturalizar. E, ao mesmo tempo, é um filme protagonizado por crianças, e com cenas tipicamente infantis, sem projetar o mundo adulto na infância.