Impressões sobre o documentário 'O Sarau'
O documentário 'O Sarau', de 1h e 09min, apresenta histórias de gente que encontrou na poesia uma maneira de transformar a percepção da realidade e, consequentemente, a imagem de sua vida. Com depoimentos de pessoas das mais variadas classes sociais e profissões sobre a relação que possuem com o ato de escrever de forma poética, a linha condutora do filme é mesmo a poesia em todas as suas formas e nuances. Da mulher negra, cortadora de cana de açúcar, ao empresário de uma usina da família, passando, também, pela sala de aula, instalação de uma fábrica, cadeia feminina, ruas e praças da cidadezinha de Dois Córregos, o bom trabalho audiovisual demonstra a força transformadora da poesia no cotidiano dos seres humanos, após se permitirem enxergar as coisas simples da vida como acontecimentos epifânicos e redentores. As limitações e barreiras que muitos dos entrevistados viveram, e ainda vivem, são apresentadas como obstáculos menores que acabam por se tornarem degraus para uma subida a uma dimensão superior e distante das dificuldades terrenas, tudo isso graças ao poder da palavra poética que os liberta e lhes mostra outras possibilidades. Com exemplos que demonstram que se pode escrever poemas após a lida diária numa lavoura de cana de açúcar ou na limpeza pública das ruas ou no ambiente mecânico da indústria ou no claustro da prisão, por exemplo, o filme mostra que não há nenhuma barreira instransponível para alguém se lançar ao mundo da imaginação poética, nem mesmo um portador de síndrome de Down, como é exemplificado por um dos autores/participantes. Nesse caso, a poesia funciona como o portal encontrado pelos sujeitos entrevistados para mundos possíveis de serem vivenciados antes mesmo das horas de sono. Confirma-se, então, a tese de que a literatura, acima de tudo, possui o poder de evocar e potencializar as capacidades criativas do ser humano em qualquer circunstância. Seja no ato de passar ferro na roupa dos patrões, no corte violento de fação para retirar a cana, nas rotinas estressantes do escritório, no contato direto com a natureza, nas lições passadas para os alunos, na vigilância forçada da carceragem, e em quaisquer outras condições e situações “a poesia permanece”, como dizia o grupo musical, O Teatro Mágico, em uma de suas canções. Isso contraria a ideia pequena de que somente homens ilustrados ou de iniciação erudita são capazes de viver e criar o fenômeno poético. Pois, poesia mesmo é saber escrever acerca da arte de viver nas mais variadas e dificultosas condições de vida, driblando as diversas pedras no caminho e apresentando soluções criativas para tal. Por fim, o sarau que acontece durante o filme é a própria participação democrática de cada um dos presentes que compartilham, com muita generosidade, o seu aprendizado e as suas inspirações poéticas, aspectos que, com certeza, acabam inspirando a quem os assiste também. Ademais, sabemos ao fim do vídeo que tudo o que foi apresentado faz parte dos resultados de um projeto ambicioso e altruísta do proprietário da usina e dono da casa onde os presentes se encontram, o mesmo que ofereceu, durante um período, oficinas de leitura e escrita poética, para, depois, incentivar os oficinandos a escreverem os seus próprios versos. Palmas ao idealizador do projeto e aos responsáveis pelo documentário, que, nas suas respectivas funções e iniciativas, também mostraram um pouco da sua poesia para nós.