A magia ao Luar (2014) – Uma metáfora incompreendida de Woody Allen
Em algum de seus livros, Nietzsche me contou achar mais admirável aquele que conseguia dizer as coisas mais fortes com as palavras mais sutis. Falava algo sobre a elegância de se expressar sem agressão, ainda que este fosse o objetivo.
Woody Allen é especialista nisso, em dizer as coisas mais fortes da vida de um modo muito sutil. Em seus filmes mais recentes, como Tudo pode dar certo (tradução horripilante, é preciso dizer, para Whatever works que, ao contrário do título em português, não pretendia evocar nenhum otimismo, mas sim desilusão – algo como “seja lá o que for” ou talvez “qualquer coisa que funcione”), Vicky, Cristina e Barcelona, Meia-Noite em Paris e muitos outros que poderiam ser citados, o grande cineasta nos deixa mensagens primorosas, que todo bom velhinho tem para dar e vender. Mas elas são bastante ácidas, desagradáveis. Ele se vale, contudo, muito habilmente, de seu “produto” (as obras primas que ainda salvam o cinema norte-americano) para lançar aos ares as terríveis “verdades” e por vezes na forma mais poética, que só um gênio poderia realizar. Outras vezes (muitas vezes, aliás) em forma de comédia, que de fato reflete bem a experiência humana.
Em Whatever Works, W. Allen usa Boris, o protagonista (um intérprete do próprio diretor), um físico-cético-intelectual, já pelos sessenta e poucos anos, para regurjitar no mundo (isto é, nos espectadores) tudo o que extraiu de suas experiências nessas poucas décadas vividas. A megalomania de W. Allen está em que ele pretende, parece, dar o recado da totalidade, em uma ou duas horas de filme. Entretanto, a intenção pode ser compreendida. Compartilhar tudo que se percebeu, quando se goza de pura lucidez aos quase oitenta anos, e produzindo arte há meio século, talvez seja não só um privilégio, mas uma necessidade. Mensagens como “eu vejo o cenário completo” e “que ninguém se engane, nem tudo depende da genialidade humana. A maior parte de sua existência é mais sorte do que gostaria de admitir”, na voz de Boris (o porta-voz de W. Allen), são bons exemplos de sua habilidade nietzscheana. No segundo filme, Vick, Cristina e Barcelona, o diretor nos atormenta com seu realismo sobre a transitoriedade do amor, a trivialidade da paixão, sobre o absurdo da monogamia e outros detalhes desagradáveis de se assumir, que só um velhinho bem vivido estaria em condições de fazer.
Em Magia ao Luar, W. Allen nos provoca novamente, com relação aos misticismos, ao charlatanismo, à ilusão (tão perseguida) de se encontrar algum sentido nessa vida. Mas ele nos trai, ele próprio nos ilude de que está revendo seu ceticismo tradicional, para depois, num golpe instantâneo, reafirmar o grande vazio que sempre pregou. Deixa-nos com cara de criança na poltrona do cinema quando dá a volta por cima e mostra que aquilo que estava quase se legitimando (como mágica de fato), é desnudado, mais uma vez, como um belo engodo! Assim, ao final, com mãos pesadas ele carimba sua obra com a mensagem “não tem ilusão!”.
A trama é simples. O conteúdo que é rico. Passa, todavia, desapercebido pelos que estão em busca do simples entretenimento. Trata-se de um mágico renomado (Stanley, Colin Firth) que se dispõe, a pedido de seu amigo de profissão, a desmascarar uma pretensa vidente (Sophie, personagem de Emma Stone) que teria seduzido uma família inteira, com suas atividades supostamente paranormais. Ocorre que o próprio mágico, Stanley, absolutamente descrente e determinado a desvendar os truques de Sophie, começa a se convencer de que a jovem possui mesmo extra-poderes ao ouvir de sua boca os detalhes minuciosos, a princípio impossíveis de serem descobertos, acerca de sua vida e sua família. Ao mesmo tempo, deixa-se levar pelos encantos de sua jovialidade tranquila; suas crenças e seu misticismo passam a enfeitiçá-lo e aí está um momento extraordinário e mesmo inesperado na reflexão de W. Allen: Ele nos conta com maravilhosa sutileza como a ilusão é condição fundamental para a paixão e a felicidade. Que coisa incrível ele nos diz. Tão real e tão negada.
O momento cabal nessa interpretação é quando Stanley, tendo levado Sophie a um antigo planetário que frequentara em sua infância, pensando à respeito dos astros revela considerá-los “ameaçadores”, ao que Sophie responde que os acha antes poético. Aqui W. Allen contrapõe ciência e fé (ou razão e paixão) pondo em evidência as diferentes possibilidades de interpretações e suas repercusões (ela ingênua e alegre; ele racional e amargurado). W. Allen está falando muito sério nessa passagem: “há coisas que é melhor enfeitar” para poder viver e para poder se apaixonar; por outro lado ele pondera “mas será certo bancar o cego?”. E aí está a maturidade na expressão de Woody: ele não dá a resposta. Deixa em aberto, como quem assume não poder, aos quase oitenta anos, afirmar mais nada. Embora Stanley desvende o charlatanismo de Sophie, identificando em seu próprio colega o informante dos detalhes curiosos que ela teria “descoberto”, ele está apaixonado e se mostra disposto, ao final, a relevar tudo em nome da paixão, pois (neste caso) o que importa a realidade?
E assim, num ataque de poesia, W. Allen parece reconsiderar seu ceticismo quase mórbido e jogar luz no que nos protege da terrível realidade. Ver os astros como ciência era desolador, mas vê-los com lirismo, com mágica, era apaixonante!
Isso fica claro no momento em que Stanley diz que Sophie lhe teria “devolvido a vida”. Com sua “mágica” e, por outro lado, com sua inocência, Stanley se protegeu, ainda que por pouco tempo, de uma realidade que o esmagava há muito tempo. O título já é, em si, bastante sagaz; a magia ao luar é o próprio amor que ali nasce, em Stanley (tão cético), sob o céu estrelado. Aqui W. Allen nos deixa boquiabertos com sua capacidade de construir metáforas espetaculares. Seu realismo poético é fascinante, mas se enriquece ainda mais pela sua veia filosófica. Importa esclarecer isso: Allen não é, já há muito, um simples comediante – nunca foi. Suas comédias, românticas ou não, são meras ferramentas para sua barulhenta, dramática, madura reflexão. E finalizo chamando atenção para a enorme injustiça que ele sofre por aqueles que deixam a sala dizendo: “é...filminho leve, nada demais”.
Mas no final reconheço que esse é o ônus da sutileza de “gritar”, de que falava Nietzsche. W. Allen corre sempre o risco de ser incompreendido, mas jamais será “um filminho leve”. Talvez se disfarce sob esse formato, apenas para chegar ao maior número de salas, afinal, há que se vender. Seu grande feito, contudo, está nas entrelinhas. Essa é a grande riqueza de sua obra e as cenas cômicas são apenas a matéria-prima que ele lapida, com sua estrondosa percepção.