Ensaio sobre a cegueira

Eu sinceramente nunca tive a intenção de escrever sobre esse filme, mas com a morte do célebre autor José Saramago, decidi falar sobre um derivado de uma de suas obras mais famosas: “Ensaio sobre a cegueira”.

O livro sempre foi considerado inadaptável para o cinema, e o próprio Saramago negou várias vezes a venda dos direitos de sua obra. Porém, o cineasta Fernando Meirelles conseguiu depois de muito tentar, adiquirir os direitos para adaptar o livro.

O filme conta a história da epidêmia de uma doença curiosa, chamada de “Cegueira Branca”, onde em vez da usual escuridão da cegueira “tradicional”, a pessoa enxerga uma névoa de aparência leitosa. Sem encontrar uma explicação científica para a enfermidade, o governo decide colocar em quarentena todos aqueles que apresentam os sintomas da doença. Segregados em um ambiente com pouca infra-estrutura, os instintos mais primitivos começam a aflorar naquelas pessoas...

Antes de tudo, tenho que dizer que 'Ensaio sobre a cegueira' não é um filme fácil de digerir, não é algo cômodo, nem feito para agradar com um visual asséptico. A cegueira serve na verdade como metáfora de nossa sociedade egocêntrica, onde parecemos estar "cegos" para o mundo que nos cerca. Apartir daí é discutido a fragilidade do modelo de nossa sociedade, que diante de um Mal desconhecido, rapidamente se despedaça.

A dificuldade de se adaptar um livro em que nenhum dos personagens recebe um nome, é evidente. Mas Meirelles consegue não apenas contornar esse problema, como também recriar com muita inteligência e crueza, a situação caótica imaginada por Saramago.

A direção de Meirelles é firme, e ele utiliza dos enquadramentos mais absurdos possíveis para ressaltar detalhes da trama, difíceis de serem inseridos numa abordagem convencional. Um exemplo é uma cena onde vemos em primeiro plano uma sala com uma tesoura pendurada, e em segundo plano, passando pela janela do corredor, vemos um grupo de cegos... Quem está assistindo ao filme, imediatamente entende o propósito daquela cena.

A falta de identidade tanto dos personagens, como da cidade em que são focados os eventos, é importante para tornar a obra algo universal. Foram usados cenas gravadas Toronto, São Paulo e Tóquio. Tudo representando uma única cidade, nos dando a noção de que aquela situação trágica poderia acontecer em qualquer lugar do mundo, independente de sua condição financeira ou social. Quando a cegueira chega, não há mais distinção entre ricos ou pobres, gordos ou magros, feios ou bonitos.

Apesar de Mark Ruffalo (o médico) e Julianne Moore (a mulher do médico) não serem um casal tão entrosado de início, aos poucos vão convencendo o público de sua relação de amor, que passará por grandes provações. E através da mulher do médico - que é a única pessoa que misteriosamente consegue enxergar - percebemos que a visão representa muito mais do que na verdade percebemos.

Um importante ponto a ser destacado no filme, é a "bela" direção de arte presente em todo o longa. Conforme a trama vai avançando, notamos a degradação do lugar onde as pessoas estão confinadas, que vai ficando repleto de fezes e sujeira. O mesmo acontece quando vemos a situação das ruas da cidade, tomadas por lixo e destruição.

Aliás, é notável a coragem de Fernando Meirelles em não poupar o espectador de momentos bastante intensos e contundentes. Quando a sociedade desaba, perde-se o limite entre o certo e o errado, e o que entra em cena é a pura selvageria. Violência no seu estado mais puro nos é apresentada, e os aspectos mais asquerosos do ser humano são mostrados de uma forma bastante clara - temos como exemplo, a cena onde um grupo de mulheres é estuprada em troca de comida para seu grupo. Vemos pessoas lutando pela sobrevivência e pela sanidade, em um ambiente sem higiene, onde o senso de humanidade se torna algo inexistente.

Ao final do filme, percebe-se que é impossível ficar apático diante da obra criada por José Saramago e adaptada por Fernando Meirelles. Ou você o ama, ou o odeia. Não existe meio termo, e é isso o que importa.

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 19/06/2010
Reeditado em 21/06/2010
Código do texto: T2329627
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