Uma Sinfonia de Silêncio (Suíte Havana)
Com quantas palavras se faz um filme, uma obra de arte? Fernando Pérez precisou de pouquíssimas. Na verdade, pode-se dizer que, em “Suíte Habana” (Suíte Havana – Cuba, 2003), seu último filme, temos um magnífico registro de pessoas comuns de carne, osso e vida, feito a partir, basicamente, dum profundo silêncio. Vários silêncios, aliás.
E como dizem, os silêncios! Cada qual com seu matiz específico, cada um com sua própria luz que é uma e todas ao mesmo tempo. Um close do feijão na panela, um velho assistindo TV, uma criança lanchando no intervalo da escola, uma vendedora de amendoins, seu olhar triste e distante em meio à cidade que, implacável, segue em desconhecê-los a todos, cheia de ruídos... o de um avião partindo pra um “aqui ao lado” tão longe... ondas estourando no Melecón, salgando os pés da velha Havana... Sim, olhares, gestos do dia-a-dia, a vida em sua prisão de tempo a escoar nos dizem muito sobre a Ilha de Fidel, sua gente, seus sonhos...
Quem são aquelas pessoas? O que nos interessa a vida delas? Gente que conjuga em si um misto de alegria e desalento de esperanças não realizadas, mas, ainda assim, esperanças. Até quando esperanças? E que cidade é essa Havana, esse persnagem, em cujo tecido vivo caminham, constroem suas insignificâncias, choram suas perdas, divertem-se, trabalham?
A revolução? Sim, a revolução: aquela antiga fotografia pendurada na parede (do tempo?) sem reboco, enquanto, na cozinha, a avó faz o café pra ser tomado ali mesmo com cream-craker e a luz do fim de tarde vai entrando pela janela...
O filme não deixa de ser uma lúcida e angustiante reflexão sobre a contemporaneidade de Cuba e a da América Latina, (não, nada de panfletário...), porém é, acima de tudo, um filme sobre gente de verdade – não à toa é um documentário – gente com as quais esbarramos todos os dias nas ruas de qualquer cidade de um Brasil, por exemplo. Belém?
É. Aquele merengue rasgado colorindo o centro da cidade, bem poderia ser um tecno-brega bem maluco, um “pancadão”, um forró – por que não? – uma guitarrada talvez. E quem nunca presenciou aquela torcida de pescoço que o ambulante dá em direção a morena que passa e que é tão comum e natural quanto ele próprio ou as risadinhas das pessoas que, vendo a cena, continuam a esperar no ponto de ônibus? Ou a cantada barata (vulgar mesmo! Dessas de virar e dar uma tapa na venta do infeliz) não é algo de universal? E há sempre o sexagenário morador de uma “cidade velha” ou “marambaia” da vida que vai sempre escutar seu radinho de pilha depois do almoço. Há isso em toda a parte: quer em Havana, na Lapa, no Mercado Modelo em Salvador, no Ver-o-Peso...
Ah, o Ver-o-Peso! Os feirantes do Ver-o-Peso despertam pra lida do mesmo modo que os de Havana: todos iguais em amanhecer, compartilhando um mesmo silêncio de 3:00h da manhã, assim repleto da sonoplastia da carga e descarga de mercadorias... E mais tarde, quem sabe não é a mesma chuva que vai lavar seus corpos e de todos os outros trabalhadores? Irmãos em batismo...
E em desejos. Como desejam, esses seres. Teimam em olhar as estrelas. Cultivam sabe lá quantas vidas paralelas; costuram uma teia quase que infinita de sonhos. Quase... Dar uma vida melhor para os filhos? Ajudar o marido aposentado? Dançar ou atuar num grande palco? Cantar travestido de mulher para um monte de gente numa gafieira? Construir a casa da mãe? Ser feliz. Desejos que cotidianamente adiamos; desejos nossos que calamos, por necessidade até.
Sim, o silêncio nos diz muito sobre nós mesmos. Mais que isso, nos convida a falarmos com nós mesmos. Faz-nos pensar em nossas alegrias e tristezas, nossa infância, nosso futuro, nossos hábitos, nossos sonhos, nossas pessoas... são tantas... nossas vidas... E, talvez, isso seja essencial.
Suíte Havana: um ótimo filme.
(pubicado no Portal Cultura de Comunicação disponível em http://www.portalcultura.com.br/clube/cinema/colunistas.php?id=71)