... E depois fui ver o Paulinho.
Semana seguinte fui ver o Paulinho da Viola. O mundo é bom, a felicidade até existe...
Antes do show encontrei o Nelson Coelho de Castro. Para quem não conhece, é um compositor e cantor gaúcho, com vários Cds gravados, de quem sou fã de carteirinha. Ela já esteve no Programa Metamorfose, por isso nos conhecemos. Nelson estava visivelmente entusiasmado e excitado com a expectativa do que estava para vir.
Entram os acompanhantes: um tecladista, um baterista, um flautista e clarinetista, um baixista, um percussionista e um violonista.
Paulinho entra em seguida, tímido e modesto.
Paulinho parece um preto-velho, cabeça totalmente branca.
Paulinho tem o sorriso ingênuo de uma criança, de uma simpatia irresistível. Todos querem ser seus amigos.
Paulinho tem os olhos tristes, de farol baixo.
Paulinho não existe de verdade, ele foi morrendo como pessoa e se transformando num ectoplasma musical.
Paulinho é obsessivo. Disfarça seu lado João Gilberto, diz placidamente que o som precisa melhorar e que há uma superposição dos violões, o que apenas ele percebe.
Paulinho canta canções tristes, que falam de decepção, de desesperança, coerentes com o olhar cabisbaixo que sustenta.
Um verso sobre a solidão é terrível: “Sorri seus dentes de chumbo”.
Seus versos são inspirados, mas não são sempre geniais. Sua música é genial, juntamente com a interpretação. Às vezes, parece que sua obsessão musical faz com que ele persiga a mesma melodia, para aperfeiçoá-la, justo como faz o outro obsessivo João Gilberto. Fico surpreso quando ele anuncia uma melodia muito diferente e ela me parece como outras que ele compõe. Talvez eu não consiga captar a diferença. Talvez seja a síndrome da cerimônia do chá: no Japão a cerimônia é repetida eternamente, porque os japoneses querem encontrar a cerimônia perfeita. No entanto, outra melodia (Roendo as Unhas), despretensiosamente apresentada, desmente que ele se repita, é dissonante, indisciplinada e professa: “Meu samba não se importa que eu desapareça”...
Paulinho conversa bastante com o público, sempre timidamente, como quem pede licença e teme estar chateando. Mas sente o dever de promover seus parceiros, contando histórias que os enaltecem. Tece loas a Cartola. Fala da parceria recente (e surpreendente para ele) com Arnaldo Antunes. Conta de sua amizade com Marisa Monte, estendida pela amizade com Carlos Monte, pai dela. Quando fala do seu pai César Faria, demonstra respeito e admiração, denunciando uma educação à moda antiga. Mas quando fala do filho, o violonista presente no palco João Rabello, esforça-se para deixar a modéstia de lado e dizer que tem orgulho de viajar com ele. Em seguida o garoto faz um solo de violão onde demonstra ter mais dedos do que o normal. De fazer Yamandú Costa titubear. Penso que esta geração nova tem uma habilidade técnica fantástica. Ao mesmo tempo falta-lhes a emoção do mestre Baden Powell. Quando Paulinho toca é evidente a inferioridade técnica de seu violão em comparação com seu filho, em compensação fica também evidente que o rapaz precisa muita estrada de maturidade para colocar emoção na sua música. Paulinho ganha. Mesmo assim, compro o CD do João Rabello na saída.
Há um momento de choro instrumental, onde Paulinho fica sendo o cavaquinho de apoio e os outros músicos brilham, sobretudo o clarinetista.
Confessou que começou a tocar cavaquinho por necessidade, já que o pai era um exímio violonista e não tinha espaço para outro, mas que tocar cavaquinho era muito chato e difícil. Logo depois ele fala com o cavaquinho e pede desculpas, dando um beijo nele. Pois não é que o diabo do instrumento ficou zangado e, no meio dum chorinho, rebentou, explodiu, uma corda e deixou o Paulinho na mão?! Ele pergunta: “O que é que eu vou fazer com você?”... E passa a tocar violão. Depois, no bis tradicional, ele volta e diz que vai emendar a corda rebentada. “Vocês já viram um artista trocando corda de instrumento em público?”, pergunta ele, calmamente, enquanto emenda a corda. Esta cena demonstra sua paciência e obsessão. O melhor é que o público espera também pacientemente em silêncio. Maravilha de momento. Ele é sensível ao comportamento do público e o bis se torna um acontecimento. Aí desfilam os velhos sucessos, o público canta timidamente, mais apreciando, degustando a sua voz de veludo. Ele se entusiasma e começa a demonstrar euforia, mesmo com os olhos de farol baixo. O que denuncia a euforia é a respiração, agora mais alta no tórax. Ele está inflado. Confessou que poderia ficar tocando ali o resto da noite. Ele está feliz e nós estamos felizes. A felicidade até existe mesmo.
O show termina com o público cantando um atravessado “parabéns a você” para o percussionista aniversariante, que está radiante.
Na saída revejo, por coincidência, o Nelson Coelho de Castro. Eu o olho e digo que aquele sujeito é pura música! Ele não consegue falar. Bate no peito como se quisesse destrancar as palavras. O gesto é suficiente para eu entender que o homem pode ter um ataque cardíaco.
Na saída, num táxi, rolam músicas da Queliqui e Claudinhoebochecha. Nem tudo pode ser perfeito...