Fui ver o Chico

Fui ver o Chico Buarque em Porto Alegre, trinta ou mais anos depois que vi seu último show.

Como não sou dado a idolatrias, costumo ir neutro para shows, ou seja, não vou esperando que seja bom ou ruim por antecedência. (O Paulinho da Viola aumenta a minha expectativa, confesso.) Mas o Chico não está no auge da sua carreira criativa, que se deu, em minha opinião, durante o período de resistência à ditadura militar brasileira.

A primeira sensação que tive, quando ele entrou no palco foi de que eu estava vendo um sobrinho, um irmão, um amigo de infância. Reparo que ele está bem fisicamente, mais jovem do que nas fotos de rosto, esguio. A timidez do artista é proporcional ao tamanho do mito. Noto logo que ele se veste como gente e não como artista ou superstar. Seu caminhar é tosco, esquisito e desprovido de charme. Não há lantejoulas. Não há sequer um brilho de fivela no sapato. Não há maquiagem. Não há falsas poses e olhares estudados. Há no palco uma pessoa que canta e que sabe seus limites de cantor, que não valoriza sua arte a ponto de reconhecer a própria mitologia. A roupa é cinza azulada (pelo menos parecia) não é vermelha ou laranja choque. Ele não inventa moda.

Quando canta reconheço sua voz peculiar, um tanto fanhosa, um pouco esganiçada, fora dos padrões de beleza vocais aceitos comumente. Não. Chico não é um cantor. É um compositor que canta. Lá pelo meio da apresentação, dou-me conta que ele interpreta suas letras com autoridade e, pesco a percepção que eu não conseguiria cantar certas melodias complexas, sobre as quais ele transita sem tropeços, à vontade, com segurança. Chico é um cantor, afinal...

Há um roteiro definido por Chico e o show é composto de blocos temáticos, sobre a arte de cantar, sobre amores perdidos, sobre cinema e um apoteótico bloco sobre o Rio de Janeiro, quando um móbile gigante, representando morros do Rio, começa a girar, como único e simples efeito especial do show. A iluminação é apenas eficiente, sem grandiosidade. A mixagem de som deixaria Vitor Ramil irritado, pois é duvidosa perto da perfeição sonora dos shows de Vitor.

O público parece ávido a participar com palmas e cantar junto, como sempre, mas não se atualizou e desconhece as suas últimas composições. Aparentemente entedia-se com as novas composições do Cd “Carioca”, pois aplaude com timidez e economia, mesmo a genial “As Atrizes”. Quando Chico resolve cantar a conhecida “Morena de Angola”, o público se anima e começa o acompanhamento quadrado que costuma usar em qualquer show, tipo um por um. Chico pede para pararem as palmas. Eu adorei. Gente se irritou. Mas é apenas um problema de retorno de som que falhou. Ele pede para consertarem e recomeça a canção, agora sem o acompanhamento dos ofendidos e maus entendedores. Um casalzinho na minha frente aproveita os momentos “chatos”, com as canções desconhecidas, para um amasso “motelesco” e passam a ignorar o mito até que a arte supere a tesão, o que vem acontecer quase ao final do show. Por falta de romantismo minha, penso: que desperdício, meu deus...

As participações especiais acontecem em dois pontos: em “Imagina”, composta em 1947 por Tom Jobim (considerada sua primeira melodia) e letrada recentemente por Chico, quando ele chama Bia Paes Leme sua tecladista para um dueto competente (no disco a maravilhosa Mônica Salmaso) e quando ele chama para cantar e sambar o seu simpaticíssimo baterista Wilson das Neves, um homem da velha guarda. Ao interpretar Tom Jobim Chico revela dois aspectos importantes de sua carreira: que é capaz de interpretar uma melodia de alta complexidade e que, perto do erudito Tom Jobim, ele se torna “apenas” o maior letrista País. Perto de Tom Jobim, mesmo no início de carreira, qualquer compositor popular de melodias fica em segundo plano.

Ao final, Chico concede um tempo para que o público faça sua catarse e canta músicas conhecidas e sambáveis. O público delira aos gritos. Não é verdade, para mim, que ele tenha convidado o público a sambar, como deu no jornal. Ele informou sim - aos músicos – que era hora de samba. Considerando o desempenho de estátua que ele manteve durante todo o show – o homem nem mexe os pés quando canta! – e o contraste da sua “dança” com Wilson das Neves (duro) é de se duvidar que ele convide alguém para sambar.

Tanto é que o show termina com a linda e delicada valsinha “João e Maria”...