Sobreviventes
Vinícius de Moraes, um documentário
Disformes, nascemos. Nus.
A caixinha de música, repetitiva a embalar sonos. Arregalantes novidades diárias a encher berços.
Tecidos enrolados esperando a tesoura social. Em cortes moldados vamos crescendo. A máquina do pensamento bordando minuto a minuto. Vamos nos convertendo. Tornando letras, números, nomes.
Com o tempo surgem os recortes, as passamanarias, os galões, as borlas. Transformamo-nos em adornos a serem apreciados. Sol a sol as melhores vestes. Emoções e instintos represados, no alinhavo. Na marca do giz. No patchwork cotidiano, um dia nos descobrimos trapos. Pedaços de nós se amontoando nos varais da existência. Partes de outros se enviesando em nossas costuras. O pânico de ver, ou mostrar, a alma desnuda, encardida, mal acabada. Com agulha e linha passamos os dias a emendar e remendar buracos, fissuras. A sedução para encontrar a armadilha, a aceitação. Pessoas rotas caminhando sem suas rotas.
Na melancolia da lua, na noite se encontram os avessos. Bailando na corda bamba...vai...vai...vai...
Lá estão... os amantes impulsivos. Os artistas instintivos. Os neuróticos assumidos. A dor da lucidez buscando regalo na embriaguez. Almas descosturadas, puídas pela sensibilidade. A compulsão de amar. A poesia. A paixão. O prazer. Esfarrapados de desejos desfilando na boemia. Ah, Vinícius...Ah, sensata insensatez... As contradições. O caos. A ambivalência. O conflito. econhecer que os botões podem se soltar. O zirzimento se abrir. O viés desenviesar. Ver que a segurança é falsa sensação. As linhas velhas. Tecelagens finas. Costuras toscas. Aceitar-se rasgado para, imediatamente, viver. Os aspectos sombrios. A carne viva. A consciência aguda. Vão caminhando corajosamente os maltrapilhos da razão.
Quem costura agora é a engenhoca dos sentimentos. Juntando retalhos, tecendo coloridos mantos de emoções. A espontaneidade do alfaiate de vida transbordante. Somos a matéria com que são feitos os sonhos. A sensação de impotência insistindo em nos manter vivos. A impulsão da vida. A impulsão da morte. É preciso, mais que talento, permanente inquietude para desnudar a alma e revelar-se um trapo humano na melhor tradução de amor e poesia.