Quero viver
Eram cinquenta cadáveres, todos cobertos por um plástico verde. Eram curtos os plásticos e via-se um pedaço dos pés e um pouco da cabeça. Jamais saberíamos a cor dos cadáveres. Jamais.
Quisera poder proclamar sinceramente meu desejo de viver. Quisera poder acreditar ainda inocentemente. Como meu pai acredita e se alegra fácil com a inauguração do Estádio Beira-Rio. Quisera poder sorrr assim. Ou mesmo, brigar, discutir, tudo sincero, convicto. As coisas chegam para ele inteiras, compactas, nítidas. Ele as recebe na força integral, como se fosse um jato d’água, sem nenhum diminuir de forças, batendo-lhe o peito. Para mim fica o resto das coisas. O som que ninguém capta, o som que tenho de disputar aos morcegos do meu mundo cheio de sombras.
Tudo para mim é aleijado. A manifestação da vida é fraca, acabei ficando fraco e pobre de recursos. A repulsão mínima. Perdi a agressividade, não sei andar com os homens. Não sei por que tudo começou.
Deveria ter certeza de querer viver. Todavia, até me agrada o torpor dessa tarde de domingo, a voz do Agnaldo Timóteo dizendo da felicidade para sua mãe. Agrado-me de tudo. Deve ser tão bom viver no eterno torpor. A total inércia. A morte. Como deverá ser a morte?
Já vi a morte bem de perto. Sei que não poderia aceitá-la do modo que se me apresentou daquela vez. Pelo menos, daquela vez. Apesar de tudo, deve ser tão bom nunca mais ter de encher os pulmões de óleo.
Nunca mais ter preocupações tão sórdidas e imbecis como, por exemplo, a ortografia. E estar estático em algum lugar, apenas olhando, deixando passar. Como olhar as vitrinas sem intenção de comprar. Ver sem precisar tirar qualquer conclusão. Num lugar morno e calmo, sonolento. Num lugar onde ninguém reagisse e nenhuma professora tivesse a ideia de sugerir um tema assim.
(Fafich, Belo Horizonte, MG, 1969)