Um amigo chateado com a escola pública

Um amigo chateado com a escola pública

Estes dias eu estava sentado em um ponto de ônibus quando me encontrei com um amigo de longa data. Conversa vai conversa vem, ele começou a desabafar sobre o seu ofício no magistério. Não é novidade alguma, pois todos os dias vemos nos jornais casos absurdos contra professores, sem contar as condições salariais precárias em que eles são submetidos, mas o depoimento dele foi um pouco diferente e me chamou a atenção, por isso resolvi transcrever na íntegra.

Miguel começou a dar aula muito cedo e passou por todas as esferas da educação: escolas urbanas, rurais, públicas, particulares, educação infantil, fundamental, médio, cursinhos para concurso e pré-vestibular, aulas particulares, etc. Cheio de vigor, sempre teve ânimo para preparar aulas e se dobrar em até três turnos por dia, mas ultimamente ele perdeu o encanto pelo que fazia. Haviam vários motivos para tal, mas um deles me chamou muita a atenção: ele me disse que se pudesse descrever o que vê todos os dias em uma palavra, esta seria “covardia”.

Segundo ele, o que o governo está fazendo com os estudantes é um ato cruel demais para ser verdade. Os alunos estão sendo iludidos de que estão indo para a escola para aprender algo e na verdade não estão. É muito comum se deparar com um aluno no sétimo ano analfabetizado. E usou esse termo, pois ele disse que os alunos estão passando realmente por um processo de analfabetização, onde são enganados o tempo todo, fingindo que aprenderam para passar de ano, quando na verdade estão sendo empurrados ano após ano pelos professores. Estes, se quiserem reprovar um aluno, passam por uma série de burocracias e impedimentos e no final acabam tendo todo o seu trabalho do ano desmerecido. Quantas vezes os próprios alunos já não jogaram isso na cara de Miguel? “Para que eu vou fazer essa atividade, eu vou passar mesmo no final do ano!”. Eles já conhecem a arma que têm e não vão abrir mão de querer tentar aprender algo, pois eles só querem ter a falsa sensação de progressão e é isso que importa: acabar a escola, sair de lá e ir procurar um emprego em qualquer lugar.

É claro que há os bons alunos, sempre tem as exceções. Mas estes ficam muito prejudicados por conta dos ruins. Eles podiam ser mil vezes mais brilhantes, mas infelizmente acabam sendo submetidos a uma classe que raramente deixa o professor expor seu pensamento, que mal entende o que aquele “cara” ou aquela “muié” estão falando e não sabem obedecer regras de convivência básicas, como respeitar uma fila da merenda ou jogar o lixo no lixo. E nesse ambiente o professor é obrigado a tentar ensinar. E o que é mais bizarro: os alunos não sabem aprender. Aulas expositivas não tem valor algum atualmente. A turma só se preocupa em copiar algo do quadro, sem entender bulhufas daquilo e depois tentar fazer um exercício, desde que o mesmo valha um visto.

E nesse contexto, um professor bom perde o seu valor. Pois ele não está ensinando. Qualquer domador de leões se sai melhor do que um doutor na matéria. Pegar o livro e passar alguma coisa no quadro, dar uma avaliação e contar as respostas qualquer um faz. Sem contar também nos livros didáticos. Eles trazem uma realidade totalmente absurda do que é a Educação. Miguel disse que várias vezes se pegou rindo quando lia o Manual do aluno. “Peçam os alunos (do sexto ano) para em círculo debaterem sobre a Guerra da Síria e as diferenças religiosas existentes no mundo”. Quando você pergunta o que eles sabem sobre religião, com muito custo alguém responde “tem católico e crente”. Está certo que cabe ao professor então ensiná-los, apresentá-las para eles, expandir seu mundo. Mas é muito difícil. Falta o conhecimento prévio para tudo. Sem contar na incapacidade de reter qualquer assunto. Acabou o bimestre, acabou o ano, todo conteúdo some da cabeça deles e sempre é necessário voltar à estaca zero.

Ele ressaltou também a falta de recursos e infraestrutura das escolas. Falou que havia uma cota mínima de xérox que não dava para nada, que não tinham livros didáticos para todos os alunos e que muitas salas eram mal iluminadas, o que prejudicava os alunos de enxergarem o giz no quadro devido aos reflexos, e isso quando o próprio quadro não estava todo destruído, com buracos ou rachaduras. Sem contar que as próprias supervisoras não sabiam baixar um anexo de um e-mail, fazendo o professor ter que imprimir algum material e entregar em mãos, enquanto podia acelerar o processo.

Além de todos esses pontos negativos, Miguel ainda reforçou outro que me deixou muito triste: sua desvalorização. Ele nem se queixou do salário hora nenhuma, mas se queixou do que a rede pública fazia com ele. Ele era obrigado a dar aulas em mais de três escolas diferentes, sendo uma situada a quilômetros da outra. Seus horários ficavam todos picados e ele tinha que passar grande parte do tempo ocioso na escola, esperando algum ônibus sendo que já podia estar em casa adiantando seu serviço. Sem contar que trabalhava sem pão, sem café e sem direito à merenda. Se quisesse comer, tinha que pagar. Ele até recebia um vale-alimentação, mas se gastasse para levar lanche ou almoço todos os dias, acabava que o benefício ficava todo no serviço. E para piorar, haviam as vaquinhas. Toda hora alguém pedia uma quantia simbólica de 10 reais para comprar ovo de páscoa, uma ajudinha para comprar gás para a merenda, se ele podia levar um pacote de café uma vez por mês, se podia contribuir para o presente de casamento da filha da prima da diretora.... e por ai vai. Ele até não importava de ajudar, mas como tinha que trabalhar em 4 escolas, esse valor quadruplicava, defasando o seu salário.

Eu fiquei muito chateado quando ouvi essas coisas da boca de Miguel. Conheço o profissionalismo dele e sua inteligência, mas pelo visto é isso que o sistema faz: oprime os bons e os fazem desistir, e os corajosos que pegam acabam se submetendo a tudo isso em troca de um salário miserável, e o ciclo da covardia continua.

Lalinho
Enviado por Lalinho em 14/03/2018
Código do texto: T6279940
Classificação de conteúdo: seguro