A Mãe da TRANSFERÊNCIA
Conheci dois grandes amigos "feiticeiros", que me proporcionaram um aprendizado único. Aliás, vários! Paulo e Alexandre, ambos alcoólatras e moradores de rua, mas como eu poderia reduzi-los tão somente a isso? Eu também não poderia estender muito minha atenção a valorização desses adoráveis sujeitos, pelo simples fato de que nossos breves e estimulantes encontros se davam após meu trabalho como barista em uma cafeteria, na praça XV (onde nossos amigos moram).
"TRANSFERÊNCIA!" Gritante! É exatamente assim que ela atua em nosso cotidiano, nas relações, nos corações amargos e viciados em encontrar o próximo "culpado." Desenvolvemos, através das tragédias e sucessivas frustrações, um meio fatídico e cego de diminuir nossa dor perante nossos mais obscuros compartimentos internos, a transferência.
A Mãe, dos tempos de valores intrínsecos da violência e da objetificação sexual da mulher, foi uma menina de poucas condições, e sua mãe morreu quando ainda era muito novinha. A miséria ia cada vez mais invadindo sua vida... Aos 14 anos se viu roubada e apaixonada por um homem alguns tantos anos mais velho que ela. Chucra, do mato, arisca! Ela tinha pouca experiência, mas sabia lavar, calar, passar,cozinhar e trabalhar. A Mãe foi mãe de nove filhos, trabalhava o dia todo para dar de comer as crianças e fazer as unhas nos finais de semana. Seu marido, alcoólatra, agressivo e outra vítima, chegava em casa louco de pinga e açoitava a coitada na frente das crianças.
O adultério era uma das atividades mais praticadas pelo marido, e Mãe era braba! Quase sempre batia em uma das amantes,outras coitadas. A família era de poucas condições, de luta, violência e, apesar dos pesares, amor. De um jeito obsessivo e doentio, havia paixão entre o casal. E havia amor e aspirações para os filhos. Porque mesmo cometendo frequentes erros, nós, seres complexos, ainda conseguimos amar e querer um mundo de bençãos, mesmo que não saibamos como obter as ferramentas certas para isso. Mesmo que não tenhamos tido oportunidade de conhecer essas ferramentas, nós queremos!
Com o passar dos anos os filhos crescem; adolescentes, pré-adultos... E ainda que sentindo amor pelos pais, ainda que sendo constituídos de esperança, fé e bons sentimentos, não podem apagar os erros e o caos absoluto que foram transferidos a eles. Não podem apagar a imagem de um pai fraco que não se continha diante a bebida, de uma Mãe ignorante que não teve a chance de aprender política, literatura, doçura, consciência... CONSCIÊNCIA sobre seus fantasmas, seu ódio, seu caos (que provavelmente também lhe foi transferido sob as mesmas esferas). Agora eles também têm seus demônios diários. E eles também terão seus filhos (sou a prova viva disso!)... Mas será que o mesmo discernimento? Ferramentas?
A Mãe largou o marido depois dos 40 anos de idade, decidiu ir sofrer sozinha. A Mãe é uma das pessoas mais amargas que conheço hoje, realmente não nos damos bem! Ela me irrita, me coloca pra baixo constantemente com sua falta de tato, de carinho. Mas eu não me dou o desatino de demonstrar minha irritação (não sempre, mas já surtei), pois eu compreendo sua dor, porém acredito que ela morrerá cheia de dores... Morrerá repleta de seus fantasmas. Não soube que seus filhos precisavam mais que o pão, mais que o tijolo quente debaixo do colchão no inverno. Que precisavam de motivação, respeito, compreensão e conscientização! Que ela precisava de tudo isso em dobro!
A Mãe foi tantas mães por aí... Inclusive, é hoje a minha: minha mãe é filha da Mãe! E nossa relação não é das melhores, e por muito tempo foi marcada por brigas destruidoras, intensas e corrosivas. Hoje, depois de tanto palavrão, tanta aflição, me encontro igualmente atormentada... E apesar de eu não querer morar junto dela, de ser mais saudável e seguro como as coisas estão, eu não consigo deixá-la. Eu não consigo deixar de dizê-la que precisa ter mais paciência, de que ela é vitima de outras vitimas, mas que isso não pode resigná-la a ideia de que é normal criarmos mais vitimas. E de que eu não posso ser o retrato da mulher que ela construiu para mim!
Precisamos parar com nossas transferências doentias de culpa. Precisamos nos abrir a um mundo que começa todos os dias lá fora, inteirinho para novos recomeços, novas reeducações! Começando conosco. Jamais fazer da força, da intolerância e da violência, instrumentos para obter absolutamente nada nessa vida! Ser uma vitima não lhe dá o direito de criar mais vitimas, apenas lhe dá a delicadeza de poder ser compreendido. Comece a compreender-se. Perdoe-se! Ame-se! E emane apenas o que for repleto de sua luz interior. A propósito, não somente você, ame seu próximo também. Eu amo você, Mãe.
PS: Minha gratidão e carinho pelos amigos, escritores de ávidas veias poéticas, citados lá em cima do texto. Vocês são excepcionais! E eu acredito ter intensificado o que vocês me propuseram com as lições, mas o que esperar de uma canceriana? Toda luz do mundo, amigos.