UM HERACLÍTICO ASSUMIDO

Possuímos dois rios dentro de nós: a noção do eu, que nos propicia a imagem da continuidade entre os instantes da percepção em revelações da memória, e o domínio transcendental de nossa consciência, o Self de Jung, cujo acesso se dá de forma nebulosa.

Sentimos a mudança como uma série de movimentos do mundo externo e interno. Olhando para o desfazer de uma nuvem, reparamos dentro de nós, que além da forma dela não ser mais a mesma de um instante a outro, nosso estado interno que ali se fixou, também mudou. Posteriormente ao rearranjo aleatório dos gases, a outra forma ali surgida caracterizou uma nova impressão a nós. Nessa impressão novamente colocamos um novo sentido, ou o sentido é que gerou a correspondência do movimento observado, de acordo com as sensações dos movimentos interiores de outros significados que nos caracteriza a ação do pensamento.

Cada instante de percepção se nos afigura único, ele sempre será tudo, durando na proporção observador-observado via significado que ainda não sofreu mudança de sentido. Olho para uma cadeira, a percepção dura dentro do tempo próprio daquela observação, enquanto um estado outro de percepção não substitua essa duração. O que a noção da forma cadeira existente em meus estados psicológicos memorizados me condiciona. Mas o pensamento habituado a preencher com novas relações a observação, rompe esse estado de permanência, estabelecendo uma nova impressão do presente, um novo sentido para uma nova duração, semelhante à rolagem de um filme de cinema, como na teoria da percepção de Bergson.

O objeto (fotograma) permaneceu o mesmo, tanto na impressão armazenada como memória, quanto no mundo externo. Posta ao mundo, contudo, não se pode perceber sem buscar na memória as referências significativas sobre o observado, por isso geramos um novo tipo de percepção, como se algo se sucedesse a outro anterior, como David Hume detalha em seus estudos sobre a causação. Pois esse mergulho no mundo interior das relações da percepção e da memória do objeto em exame faz com que o tempo próprio daquele instante, que não pode ser nada além dele mesmo, desapareça na próxima percepção que o conterá e será nova.

Se se pudesse observar sem pormos ou extrairmos significados do objeto examinado, desfazendo a ação do signo, o tempo psicológico desapareceria, como os meditadores budistas afirmam? Nessa eterna briga pré-socrática entre a permanência e a impermanência, teríamos aí, então, a revanche de Parmênides sobre Heráclito, ou aquilo que somente é, sem admitir qualquer movimento e possibilidades de representações?

Ao estarmos absorvidos no instante do eu, a fagulha do absoluto, não podemos perceber, ao mesmo tempo, o significado do último termo da série de pensamentos que nos originou o objeto examinado por nossa consciência, ou sua trilha causal, e o objeto do presente, o fotograma. A consciência ou terá um ou outro; ou a série dos objetos passados ou o objeto do presente.

Cada percepção que se sobrepõe à outra, cria o sentido do tempo psicológico. Como cada realidade fixada no momento da percepção encontra a síntese na memória, gerando um novo ato de perceber, origina-se a impressão de que há continuidade entre dois estados diferentes. Sobre essa continuidade encontrada de maneira única em cada ser, como a Gestalt demonstra, cria-se a noção do eu invariante entre o passar e o durar. Mesmo tendo uma região de consciência que percebe esse “eu invariante” como um estado mais sombreado quando vista na proporção dela, ou Self. Nesse sentido é que podemos dizer que há uma consciência em nós com menor qualidade de consciência, pois há um Self e um ego que se julga invariante. O ego apenas age por noções de que entre algo e outro ocorreu mudança, julga o tempo por esse transformismo, mas como acima ficou claro, não podemos obter o mecanismo da solução de continuidade entre a cadeia de eventos percepcionados, ao mesmo tempo em que vivenciamos o estado presente da percepção.

Num certo sentido, o ego é sombra de algo bem maior e mais completo do que ele, mas esse algo que apenas é, está sujeito ao mundo dos fenômenos, não pode ser vivido em sua essência por completo. Mesmo que a realidade última seja a de Parmênides, a imediata, a do ser-no-mundo, é a de Heráclito. Ou, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.