Espelho Quebrado

Ultraje interior: despencou o último timo de esperança que me restava. Surgiu de repente. Um dia acordei e não me encontrei no espelho de barbear.

Por mais que limpasse a névoa quente de fumaça que se embrenhava pelo cômodo, não conseguia me achar. Como bom lutador aliado a uma extrema covardia comecei a gritar.

Chamei de imediato, os soldados à postos: o bombeiro, o padre e o vidraceiro que sempre ficam de prontidão em minha vida para qualquer situação de emergência.E essa era uma delas.

O bombeiro justificou, com sua eterna sabedoria popular, que aquilo era fruto da diferença térmica entre a temperatura lá fora que beirava -5 graus e a interior que chegava a 35 graus. Aliviei-me.

Afinal de contas, eu estava ali, mas a extremidade do inverno não me deixava ver. O padre, mais cáustico disse que era sinal dos tempos: o homem estava destruindo a si próprio, através de sucessivos e incríveis pecados.E com sua experiência salientou que a cada dia havia

um pecado novo em prática.E eu, certamente, deveria um daqueles que sempre queria inventar um pecado novo que ninguém ainda conhecia.Me penitenciei junto à Marialva - que coitada - era fruto de meus anseios, mas cuja palavra certa era pecado.

Sugeriu que eu, ali mesmo, me confessasse e rezasse ave-marias incessantes. Fiquei como uma pena de alívio. Sobrevoava diante de mim mesmo, e o fato de não me ver no espelho era simplesmente fruto de meus inúmeros,incontáveis e quase imperdoáveis pecados.A maioria, novos.

Por fim veio o vidraceiro que examinou detidamente e, austero, disse, após alguns minutos: o espelho é de boa qualidade e de procedência medieval.

Você - e apontou para mim - envelheceu tanto, mais tanto, que não consegue mais se enxergar. Dai para pior - disse ele, bem qualificado. Aí,entrei em desespero interior.

Quis gritar, mas a voz saia rouca. Me procurei de novo no espelho e nada. O vidraceiro tinha razão. Eu envelhecera. Apesar de meus 40 anos não conseguia mais me encontrar na vida. Um ângelus solitário.

José Kappel
Enviado por José Kappel em 15/04/2006
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