ALIMENTA RATOS, FILHINHA! - (Contra-contos #11)

ALIMENTA RATOS, FILHINHA!

Papai não briga, nem Mamãe, quando faço xixi na cama.

Eu é que acho feio e enjoado, aí, eu crio mais coragem e levanto de noite e vou fazer xixi no banheiro, eu já estou uma mocinha, as pessoas dizem.

De vez em quando não tem jeito, eu acordo com a cama molhada, minha mãe só olha para mim de um jeito engraçado, me faz uma festa e diz que se eu crescer assim e casar, meu marido vai ter que pagar a lavadeira porque máquina de lavar roupa sozinha não dá.

Ela brinca muito comigo, é uma mãe muito boa, a melhor do mundo, nunca me bateu nem falou de cara feia. Meu pai gosta muito dela, eu gosto muito dela e dele também. E gosto também da Vovó, do titio, da tia Maria e da tia Nanci. E eu gosto do Tonico.

E eu também gosto muito dos bichos.

Todos os bichos. Não tem sapo feio pra mim, só que por aqui não tem mais, acho que foi a cerca que Papai fez, com portão e tudo. Assim o cachorro não sai do terraço do quintal do barranco do morro, não entra mais sapo.

Como são bonitinhos os sapos! Quase tanto quanto os ratinhos.

Os ratinhos?

Ah, eu não posso criar eles não. Papai e Mamãe me deixam cuidar de todos os bichos que eu quero, quando eu falei em criar aquele ratinho e aquela ratinha eles disseram que não, Papai quase fechou a cara e zangou. Não faz mal, tem outros bichos – e eu sei como fazer para eles não saberem. Papai e Mamãe.

Eu estou levantando de noite pra isso, entendeu?

Que xixi na cama, que nada! Tem vez que é, mesmo, e tem vez que eu esqueço e faço de verdade, mas não é só pra isso, não! Eu vou até o terraço e lá na lata de lixo os ratinhos se acostumaram comigo, nem fogem mais.

Com a lanterna elétrica do Papai eu olho bem, a luz não incomoda mais eles, não.

De começo fugiam quando eu chegava mas depois foram acostumando. De começo era um só, acho que era fêmea porque depois foram aparecendo outros bem filhotes.

Ela estava magra e com muita fome – por isso eu comecei a botar comida escondido pra eles. Eu faço minha comida no fogãozinho que ganhei no Natal, eu guardo e de noite eu vou lá e boto pra eles.

Assim era um pra começar, aquela rata magra com filhotes, mas agora tem mais de vinte, que gracinha!

Papai falou sobre a fome no mundo, diz que na Índia e na África tem gente morrendo de fome. Perguntei a ele se a gente podia mandar comida pra lá, ele riu e disse se eu mandava minha, eu já estava magrela. Eu disse que não mandava, não – mas não expliquei por quê, nem ia explicar, ora essa!

Tem uns ratos mais mansinhos, quando eu chego eles vêm logo e não fogem mais de mim, comem na minha mão. Só que agora eu estou fazendo mais comida, porque acaba logo e eles ficam com fome e querem mais. Estão crescendo, eu comecei a dar mais comida porque estavam brigando na hora de comer, um deles chegou a morder meu dedo quando eu fui desapartar. Sangrou um pouquinho, não foi nada, ele não fez por mal.

Por isso eu parei de fazer xixi na cama. Eu faço a comida de dia, minha mãe nem repara, eu boto bastante do meu pão com manteiga de lado, de noite eu vou dormir mas não leva tempo e levanto, só fingi que dormia. Às vezes meu pai e minha mãe perguntam onde eu vou, explico que vou no banheiro, ele ou ela diz ‘muito bem, filhinha’ e eu faço mesmo xixi, mas levo também a comida para os ratinhos, só que dou depressa e volto logo pra cama.

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Tem uns grandes já, a comida eles devoram muito depressa e saem correndo. Eu acho que vão levar para os filhotes, no ninho lá no morro, algum lugar que eu não sei, porque fica tudo muito escuro e não tem luz.

Papai e Mamãe estão muito satisfeitos comigo, eles acham que eu aprendi a não molhar mais a cama, ela já disse que assim eu posso casar quando crescer porque não passo vergonha com meu marido.

Que bobagem dela, eu não quero casar!

Eu quero ter uma casa e criar todos os bichinhos do mundo, dar comida pra eles.

Casar é pra gente grande, eu não sou grande, eu não preciso ter filho, os bichinhos são meus filhos.

Eu estou aumentando a comida pra eles, todos os doces que eu ganho eu vou guardando, tiro só um pouco pra mim, o resto eu dou a eles. De noite tudo está quieto, ninguém faz barulho, Papai e Mamãe dormem pesado, aí eu posso ir ao banheiro, depois dar comida a eles. Os meus filhos.

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Bem, eu estou um pouco embatucada, assim como fala a tia Maria.

De noite os meus filhos estão começando a fazer barulho -- tem mais de cem!

A comida que eu dava pra eles na mão, agora eu tenho de jogar pela janela e fechar logo, porque estão muito malcriados, muito mal-educados.

Ontem eu levei um susto, quando fui ao banheiro, tinha barulho na lata de lixo, eu fui olhar pela janela e tinha rato à beça!

Vou ter de dar mais comida, eles estão brigando uns com os outros, briga feia.

Eu fui salvar um pobrezinho menor que dois estavam mordendo e me morderam! Estavam muito bravos – deve ser fome. Vou dar mais comida.

O machucado na mão eu disse à Mamãe que foi um tombo e que ralei a mão. Mamãe passou água oxigenada e disse que eu preciso ter mais cuidado, olhar onde piso.

Se ela soubesse!

Acho que tenho mais de cem filhos, agora, dá para contar mas eu só sei contar até trinta e dois, eles andam de um lado para outro porque eu estou dando mais comida e ficaram mais calmos, não estão brigando mais. Mas atrapalha a contagem. Vou estudar mais e aprender a contar até cem, até mil!

Vai ser preciso para saber quantos filhos eu tenho, tenho dado mais comida, minha mãe disse que eu preciso comer mais, estou ficando magra e pálida. Ela nem sabe que estou dando mais da metade da minha comida aos meus filhos.

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Ontem de noite eu não pude dar muita coisa, quando eu ia para a cama teve um barulho, meu pai acordou e foi ver. Ele acendeu a luz do terraço de trás, parecia na lata de lixo. Aí eu ouvi a tampa cair, eu deixo meio aberta para os ratinhos poderem entrar e sair.

Ele veio de lá resmungando, disse que devia ser algum gato com fome, que não se pode deixar resto de comida no lixo porque cria mau costume de gato dos outros, essa gente quer ter gato sem dar comida, eles fazem barulho de noite, ficam desesperados quando estão com fome.

Ah, se ele soubesse!

Que gato, que coisa nenhuma, gato é bicho ruim, gato mata e come os ratinhos. Apareceu um por aqui e eu toquei ele com a vassoura, acho que ele é do vizinho.

Eu vou botar a comida espalhada pelo chão, assim os ratinhos não fazem mais barulho, a tampa da lata não cai e não acorda mais o Papai.

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Bem, eu não sei direito o que vou fazer.

Acho que tem mais de duzentos ratos lá fora, esperando a comida que eu ponho, porque eu aprendi a contar até oitenta e não deu. Muito ratinho novo, umas gracinhas, mas os mais velhos, os grandes, são muito brutos.

Eu estou botando quase toda a minha comida por lá, Mamãe me levou ao médico e o médico disse que eu preciso comer mais e tomar vitamina, só isso.

Ela aumentou meu prato e eu aumentei a comida para os ratinhos, os meus filhos – só os pequenos.

Os grandes não são mais meus filhos, não.

Já cresceram e sabem cuidar da vida, brigam muito uns com os outros.

Não tem havido mais barulho de noite, eu disse ao Papai que o gato do vizinho não está mais aparecendo, não é?

Com minha carinha de anjo, ele é quem disse que eu tenho carinha de anjo, treinei mais no espelho.

Ele me olhou de um modo engraçado, foi trabalhar.

Ele disse que as vitaminas não estão me ajudando nem um pouco, vai comigo ao médico outra vez, qualquer hora dessas, que eu estou meio pálida.

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Ontem eu embatuquei de verdade.

Eu não sei mais como é que vou fazer.

Comecei a tirar comida da panela, escondida, e a Mamãe me pegou e ficou olhando pra mim, perguntou se eu estava com vermes, pálida e magra e tirando comida da panela…

Como pode ser? ela disse. Comendo desse jeito, esvaziando os pratos, tomando remédio e vitamina e continua magra? Ela vai chamar o doutor, foi o que ela falou.

Como é que eu vou dar mais comida a meus filhinhos, agora que ela me pegou tirando da panela e do forno?

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Valpii 860506-790820

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ALIMENTA RATOS, FILHINHA!

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do décimo primeiro dos contos da coletânea.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 06/10/2024
Código do texto: T8167566
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