Cremos que, neste ponto da nossa narrativa os leitores devem estar curiosos para saber por que vias de informação nós chegamos à conclusão de que o Lameque que matou Cain e seu próprio filho, que agora sabemos ser Tubal-Cain, o moço que havia se especializado na profissão de ferreiro, são a mesma pessoa. 

Como sabemos, Enoque, o filho de Cain com Lilith se chamava Irad, e este por sua vez deu a Cain e Lilith um neto chamado Maviavel. Esse Maviavel, segundo fontes não confirmadas era um bom carpinteiro, e há quem diga que foi exatamente ele que deu a Noé as indicações para construir a famosa arca. Maviavel também teve um filho, que foi registrado no Livro, com o nome de Matusael, que segundo se diz era um ferreiro de primeira e foi ele quem ensinou seu neto Tubal-Cain, a quem o Livro atribui mestria nas artes metalúrgicas. Essas mesmas fontes nos informaram que Matusael casou-se com a filha daquele Cainan, neto de Adão e filho de Enos. E ele teve duas filhas, a quem chamou de Ada e Shila, que foram as duas mulheres de Lameque, e lhe deram os filhos chamados Jubal, Jabel, Tubal Cain e Noema, que também ficou famosa como demônio fêmea, segundo fontes não canônicas.

Por essa altura, como já informado, Jeová estava fulo da vida com a humanidade. Os cento e vinte anos que ele havia dado de lambuja para que ela se emendasse estavam acabando e nada dos caras se emendarem. Ao contrário, a depravação rolava solta naquelas terras, o que nos faz pensar que todo mundo pegava todo mundo, sem distinção de sexo, homem com homem, mulher com mulher, o que mostra que esse tipo de comportamento não é coisa nova, nem pode ser posto na conta de um arrefecimento da moral da humanidade nestes tempos modernos onde a tolerância, seja lá com o que for, tornou-se uma virtude digna de figurar entre aquelas que antigamente se diziam teologais.

Há também informações que as mulheres daquela época se preocupavam tanto com suas silhuetas que costumavam tomar uma certa bebida que as conservavam jovens e bonitas por muito tempo, algo semelhante ao que temos hoje com a nossa indústria de cosméticos, e os remédios que se tomam para retardar a velhice. Mas segundo quem nos deu essa notícia, a mulher que tomava essa bebida ficava estéril, o que nos faz pensar que o uso dos anti concepcionais e a esterilização feminina não é, de maneira nenhuma, uma providência que põe em face do problema da superpopulação, porque nessas auroras do povoamento terrestre, já se praticava essa, que diríamos, podemos chamar de estratégia para praticar uma libertinagem desenfreada sem o perigo de gerar filhos. Daí se dizer que as gentes daqueles tempos viviam a transgredir os preceitos do Senhor, especialmente o crescei e multiplicai, com o qual ele esperava que os seres humanos enchessem a terra com pessoas virtuosas e cumpridoras dos seus estatutos. A se julgar por esse prisma o efeito estava sendo exatamente o contrário do que Deus esperava, pois além de as mulheres ficarem estéreis e muitos homens preferirem fazer sexo com outros homens, a gandaia era geral. Compreende-se, dessa forma, que Deus estivesse fulo da vida com os seres humanos e tenha se arrependido de tê-los feito como está escrito que ficou.

Considerando a longevidade que todos os patriarcas tinham é de se crer que Cain ainda  estava vivo nos dias de Lameque e seus filhos Jubal, Jabel e Tubal Cain. Afinal, sete gerações separavam o seu nascimento desses seus descendentes. Se cada geração se conta por vinte dos nossos anos, apenas cento e vinte separam Cain dos filhos de Lameque. Assim, não nos causa nenhuma espécie que ele tivesse conhecido esses membros da sua linhagem, que segundo consta, foi a última da sua cepa que nasceu sobre  a terra, o que podemos invocar para cumprir aquela profecia que Deus fez a Cain, de que o seu crime seria vingado sete vezes, o que significa após sete gerações.

Agora, vamos ver Cain já nos seus oitocentos anos de vida ou mais ― que de ordinário ninguém sabe realmente quanto tempo viviam os patriarcas daqueles tempos ― estava chegando nos seus últimos dias na terra, e como sabemos, vivendo como um rei na cidade de Eridu, que seu pai angélico, o Dragão Samael, também conhecido por Satanás, Dagon, Arimã, Satan, Lúcifer e outros epítetos, havia construído e era adorado como o verdadeiro deus do mundo, porque ali, como se sabe, ninguém conhecia Jeová. E talvez fosse isso o que mais o aborrecia, porquanto ele sabia que nada tem existência concreta quando ela não é conhecida ou detectada pela consciência humana. Um deus até pode existir sem ser conhecido, bastando para isso que a sensibilidade de alguém tenha a intuição da sua existência, mas ali, na terra de Senaar, e em todas as cidades daquele país dos nefilins, a sua existência era simplesmente ignorada. Samael trabalhara bem a mente daquele povo, incutindo neles justamente aquilo que fizera Adão e Eva acreditar: que nenhum mal havia no conhecimento, que a aquisição da sabedoria também era privilégio dos homens e não apenas dos deuses e, principalmente, que o prazer dos sentidos era muito mais importante do que a inocência. E por causa disso, aqueles filhos dos homens, que eram o resultado do comércio bastardo com os nefilins, haviam se tornado tão promíscuos e desobedientes aos estatutos que Deus havia prescrito para a humanidade, que tudo que faziam era para satisfazer o prazer dos sentidos.

Consta, por apócrifas informações que foram censuradas nas crônicas oficiais, que Cain ainda estava vivo quando seu descendente, Lameque, deu nascimento á sua sétima geração. Esse Lameque, como sabemos, foi aquele que consta como o iniciador da poligamia, pois que casou-se com duas mulheres, Silah e Ada, supostamente irmãs, o que de resto não deve causar espécie em ninguém, porquanto se sabe que esse era um costume muito em voga naqueles tempos entre aqueles povos, o que se prova, inclusive por vias canônicas, com a história daquele Jacó que casou-se com duas irmãos, Lia e Raquel, para dar nascimento ao povo que escreveu o Livro, não esquecendo ainda que o próprio patriarca Abrão também se embolou com duas mulheres para dar geração aos dois filhos que iriam povoar aquela terra da Palestina, que por causa disso se tornou tão conflagrada até os dias de hoje.

 E que Cain gostava de caçar, prazer que deve ter passado aos seus descendentes, pois sabe-se hoje, e talvez naquelas antigas calendas também já se soubesse, que certas características de personalidade são transmissíveis de geração a geração, é algo que pode ser informado sem medo de cometer nenhuma gafe. De sorte que, num dia daqueles, em que Cain resolveu deixar o palácio para ir ao campo caçar, quem ele encontra? Justamente o seu descendente de sexta geração, o inefável Lameque, acompanhado de seu filho mais jovem, o ferreiro Tubal Cain. E segundo se diz, Lamech também já estava velho e avançado em anos, e os seus olhos eram escuros, cheio daquelas manchas antigamente chamadas belias, que hoje conhecemos pelo nome de cataratas, de forma que ele não enxergava muito bem. Por isso, por isso toda vez que o velho Lameque saia para caçar ele levava com ele o filho caçula, Tubal-Cain.  Consta que, numa dessas ocasiões, Lameque e Tubal Cain  se encontraram com Cain  no campo, e como estavam separados por algumas centenas de anos de nascimento, não se reconheceram. Nem Cain adivinhou que eles eram seus descendentes de sétima geração, nem Lameque e Tubal Cain desconfiaram que ali estava o seu primeiro antepassado. Logo, um conflito se desencadeou entre eles porque Caim atirou suas flexas no mesmo animal que estava na mira do arco de Lameque. E este, na luta que se seguiu pelo troféu da caçada, foi ferido por Caim. Tubal Caim, vendo seu pai ferido acabou atingindo Caim com as flexas que tinha reservado para o animal. Lameque, ainda que ferido por Cain, acabou por matá-lo com pancadas do seu cajado. Animal por animal, disse ele, mas quando Lameque viu que o seu adversário se tratava do seu antepassado Cain, ficou tomado de uma ira incontrolável, pegou uma pedra no chão e bateu com ela na cabeça do seu filho, Tubal Cain, que morreu instantaneamente. Daí porque Lameque disse aquelas enigmáticas palavras às suas duas esposas: “ouvi, mulheres de Lameque: por acaso matei um homem por minhas feridas e um jovem pela minha confusão. Se de Cain se tomou vingança por sete vezes, de mim será tomada setenta vezes sete.” Esse dito, era, na verdade uma profecia, como já se disse. A geração de Cain terminava ali, com morte de Tubal Cain e as setenta vezes sete que serão tomadas em relação ao crime de Lameque são todas as guerras, pragas e catástrofes que a humanidade promiscua e pecadora sofrerá até que ela se redima aos olhos de Jeová. Essas são previsões feitas pelos nossos Nostradamus de plantão, pois que de ordinário sempre os teremos em todos os tempos, pois que a mente humana nunca ficará infensa a esses surtos de pretensa clarividência, nela posta por essa crença de que hospedamos também uma composição divina que nos autoriza não só a registrar as memórias passadas como também a invadir as futuras.

Como esse tempo, previsto na profecia de Lameque perfaz cerca de nove mil e oitocentos anos, cremos estar pertos desse evento. Resta saber se esse ele será aquele previsto pelo nosso irascível profeta de Patmos, que viu tudo isso como um apocalipse, ou se será algo como os românticos pregadores da era de aquário, tempo que, segundo os quais os seres humanos descobrirão o verdadeiro sentido da vida e farão a sua reconciliação com Deus num novo céu e uma nova terra.

Assim, com Caim prostrado por terra, vamos imaginar o Dragão Samael, lá onde quer que ele esteja, contemplando o cadáver do seu filho Caim, morto pelos seus próprios descendentes, indagando de Jeová o que, afinal, ele pretendia quando resolveu fazer o homem para ser o seu interlocutor na terra. E se ele resolveu mesmo acabar com a toda alma viva para realizar um novo começo, ele, que é Deus e tem três cabeças, podendo olhar para o passado, presente e futuro e tudo ver, o que aconteceu, o que acontece e acontecerá, como é que não vê que o homem nunca será o que ele quer que seja. Que cruel brincadeira é esta que ele faz com os seres humanos, que os submete a um eterno processo de aperfeiçoamento, que, ao que parece, nunca vai acontecer. E, principalmente, sendo Deus o que é, porque deixa que ele, Samael, o Dragão, continue contaminando de vícios a sua obra.

A única resposta de Jeová, que nós conseguimos imaginar foi esta:

“Eu sou o bem e você é o mal. Se o mal não existisse, ninguém poderia saber o que é o bem. Nós somos os polos pelo qual o universo e a vida pode existir. Sem você, Samael, ninguém saberá que eu existo. Por isso eu preciso de você. Você tem um papel importante nesse enredo. Mas não fique se achando que é o principal protagonista nele. Por só Deus tem o direito de fazer o papel de Deus."