Andarás errante e perdido pelo mundo, foi o que disse o Senhor a Cain quando o arrojou da terra de Aviláh, onde habitava com pais, após ter assassinado seu irmão Abel. No entanto, Cain havia encontrado casa, comida e satisfação dos seus desejos na terra de Nod, também conhecida como Senaar, junto à Lilith, justamente a primeira mulher que o Senhor fizera para dar companheira à seu suposto pai, Adão, que agora sabemos que não o era, porque seu verdadeiro pai era Samael, o anjo caído. Cain já teria até esquecido a maldição que lhe fora posta e as invectivas que lhe lançara Jeová na conta das bravatas, se não fosse aquela letra escarlate que parecia uma cruz, que ainda ostentava na testa. Essa marca, que o Senhor lhe pusera, era, nada mais, nada menos que a letra tau, que não se sabe porque, era a marca que Deus gostava de usar para assinalar não só os que lhe eram queridos como também os que o desagradavam, o que mostra que até o Senhor Supremo precisa, às vezes de uma âncora para puxar da sua sagrada cabeça a memória de coisas que para ele são significativas e não devem ser esquecidas. A Cain, entretanto, ele dissera que a marca seria posta na sua testa para que quem o encontrasse não o matasse, mas quer nos parecer que o objetivo era outro, porquanto logo em seguida dissera que quem matasse Cain seria castigado sete vezes mais, o que parece admitir que mesmo marcado alguém poderia matá-lo. Mas dessas incoerências já sabemos que Jeová é mestre, porquanto ao mesmo tempo que premia alguém por um comportamento, também castiga outro pelo mesmo fato, como fez com os irmãos Jacó e Esaú, a quem permitiu que um irmão defraudasse o outro do seu direito com embustes e trapaças. Daí decorre que para Cain, a marca que o Senhor lhe pusera na testa se afigurava mais uma ameaça do que uma proteção, porquanto ele sabia agora que seu destino o encaminhava para um rumo totalmente oposto àquele que Jeová havia disposto para a espécie humana. Jeová o desterrara e o expulsara da frente dos seus olhos, conquanto Cain soubesse que ele tinha olhos capaz de ver em toda parte, e nada escapava do seu conhecimento.

Lilith, por sua vez, já rompera definitivamente com Jeová desde que se recusara a deitar-se com Adão e deixar que ele a penetrasse. O coitado ficara com o pênis intumescido na mão, enquanto ela se embolava com Samael, o anjo caído, dando nascimento a uma família de titãs malditos, que a crônica oficial chamou nefilins, conquanto esse título, na verdade, pertencia aos seus pais, os anjos caídos que se amasiaram com as filhas dos homens. Por sua vez, essa população de seres híbridos havia se multiplicado sobre a terra, e dado origem a todo um povo que construía cidades e templos suntuosos de tijolos queimados, e tudo registrava em tabuinhas de argila que ainda hoje podem ser consultadas. Esse povo, que chamava a si mesmo de annunaquis, povoou toda a terra de Sinaar, chamada depois como Suméria e era conhecido como a civilização do barro, por causa das grandes cidades que construíram com tijolos de adobe. Esse era o apelido que eles davam a si mesmos, porquanto se consideravam filhos de Anu, a quem acreditavam ser o deus do Céu, que por sua vez era pai de Enki, o deus da terra, que também era a divindade que lhes havia trazido o conhecimento das ciências e das artes. Destarte, os annunaquis também consideravam a sua civilização como sendo de origem celestial, pois toda a ciência de que ela se ufanava tinha sido trazido do céu pelo deus Enki.

Enki, como sabemos, tinha em Lilith a sua consorte. Ela, como sabemos, foi a  primeira mulher de Adão, que com ele se desentendeu por questões que modernamente se chamariam de feminismo e maxismo. Lilith foi a mulher da terra que Enki escolhera para dar início à raça dos seres mestiços, os chamados filhos dos anjos caídos com as filhas dos homens que ficou conhecida como nefilins, nome, que como vimos, foi emprestado dos seus pais celestiais. Ali, na terra dos annunaquis, Lilith também era conhecida pelo nome de Ninlil, de quem os registros dizem que era uma donzela de lábios miúdos, que tinha dificuldade para beijar e possuía vagina pequena, cuja penetração por um falo humano era doloroso, o que nos leva a crer ter sido esse o fato de ele ter se recusado a deitar-se com Adão, e depois tê-lo feito com Samael, que por não ser humano podia fazer o seu órgão sexual ficar do tamanho que quisesse. Essa é uma interpolação que fazemos por nossa conta, porquanto não está registrada nas fontes canônicas e nem nas apócrifas, mas quando se precisa justificar uma narrativa, qualquer argumento é válido ainda que dele se possa dizer que se trata de um rematado disparate.

No grande zigurate que ficava bem no centro da cidade havia um altar dedicado ao deus Enki, que segundo a crença local teria sido vindo do céu e se juntado à Lilith, a rainha desse reino, e também sacerdotisa que oficiava o culto ao marido divino, primeiro rei daquela gente. Esse deus, Enki, como já devem ter descoberto os leitores, era nada mais, nada menos que o mesmo Samael, o anjo rebelde, o Dragão, que sabemos ser o verdadeiro pai de Cain.

 

Postas essas considerações não haverá estranhezas por parte dos leitores se dissermos que Cain sentia-se enormemente atraído pelo culto a Enki e dele participava assiduamente com Lilith, oferendo os sacrifícios de praxe. Diferentemente de Jeová, que havia recusado as oferendas dele, Enki nunca as refutava, e os frutos, a carne e a gordura que Cain incensava no altar de Enki sempre subiam ao céu verticalmente, como sinal de que aquele Deus sim, dele se agradava, e não se mostrava uma divindade caprichosa e seletiva como Jeová, que fazia escolhas a seu bel prazer sem dar por elas qualquer justificativa plausível. Enki, ao contrário, aceitava de tudo que lhe ofereciam. Carne, gordura, hortaliças, grãos, prata, ouro e toda sorte de oferendas, as quais, ao invés de serem queimadas em um altar, eram entregues aos guardas do templo, que davam a elas o devido destino. Este, naturalmente, eram os celeiros do templo em se tratando dos frutos da agricultura, ou o tesouro real, no caso de metais preciosos, o que justifica aquele adágio segundo o qual se diz que quem dá aos pobres empresta a Deus e quem dá ao sacerdote investe numa empresa fantasma que nunca distribui dividendos.

Que estava escrito, não nas tabuinhas de argila com que os habitantes de Sanaar registravam os fatos e as conquistas da sua civilização, mas nas estrelas, ou quiçá nos pergaminhos do destino, que Cain iria encontrar seu pai verdadeiro na terra dos nefilins, isso é coisa que todo mundo já deve ter intuído. E que Samael, o anjo caído, vulgo Enki, ou Eridu ou ainda Marduc, como ficou conhecido em outras cidades do país, iria ser para ele o que Jeová não quis ser, ou seja, um verdadeiro pai, justo, orientador e benigno, como convém á uma divindade de quem tudo se espera de bom, também é fato que salta logo dos olhos de quem está seguindo com atenção a narrativa e não apenas morgando em cima dela para matar o tempo. Porque Enki, da mesma forma que Jeová, muitos séculos depois, se apresentaria pessoalmente a Moisés no Monte Horeb, não na sua forma física, porque essa ele nunca assumiu, mas como um fogo fátuo brilhando dentro de um arbusto, Enki, um dia em que Cain estava orando em frente ao seu altar, também lhe apareceu,  não na figura do anjo que ele era, nem como um dragão de ventas afogueadas, como seria pintado amiúde nas lendas medievais, ou mesmo como serpente, como se travestiu para abordar Adão e Eva no Éden, mas sim, na forma de um sopro quente e seco, semelhante ao chamado khansim, vento que sopra no deserto e que muitos chamam de voz do Senhor. E como aquele vento expele línguas de um fogo azulado sobre o altar dos sacrifícios, como chamas que saem do bico de um fogareiro alimentado a gás, e também uiva como lobo dentro de uma caverna, há quem diga que ele fala e sugere oráculos que não são de se desprezar. E para que não se tome como bizarrice essa imagem convém lembrar que a terra de Senaar é aquela que os acadêmicos viriam depois chamar de Suméria, a terra onde as primeiras civilizações do mundo tomaram forma. Hoje essa terra é a maior fornecedora de petróleo do mundo, e já naqueles tempos esse era um recurso assaz explorado pelos nativos da região, tanto que aquele país era conhecido como a terra das napatus, que por força das múltiplas transformações que uma lingua sofre no correr dos tempos resultou na palavra nafta. As napatus eram conhecidas como as pedras que queimam, e ali o vento quente do deserto, soprando sobre elas, às vezes provoca sua combustão, expelindo labaredas de um azul violáceo. O que justifica as muitas notícias sobre fogos que surgem inopinadamente no meio do deserto, sobre sarças que ardem e falam, o que bem se entende que o porquê, porquanto se sabe que as gentes que moram nos desertos são muito suscetíveis à alucinações e a ouvir vozes que lhes falam do meio delas, mas que na verdade são manifestações dos seus inconscientes liberados pela solidão do deserto. Por outro lado, se admitirmos que Jeová também se manifestava através de um fogo azulado para transmitir suas ordens a Moisés, e em várias outras oportunidades se valeu desse recurso para manifestar sua força, como no caso de Sodoma e Gomorra, que foram destruídas pelo fogo que veio do céu, ou dos sacerdotes de Baal ―outro nome de Samael ―que foram consumidos pelo fogo que Elias pediu que ele mandasse para queimar os heréticos mistagogos que se lhes opunha com suas malévolas urtimashes masashes. Esse estranho nome era o que os sumérios davam aos encantamentos e bruxedos que os magos e encantadores daquele tempo faziam nos seus templos, no topo dos zigurates, e hoje os  vigaristas dos púlpitos fazem nos seus templos, o que prova a razão daqueles que dizem que nada de novo existe sob o sol. Assim, Assim, se de Jeová não exige parcimônia no uso desses efeitos-demonstrações pirotécnicos, é de bom alvitre que demos a mesma prerrogativa a Samael, pois sendo ele o polo oposto da Potência de Deus, há que se vê-lo obrando com armas do mesmo calibre nessa queda de braço que desde esses longínquos tempos eles travam pela alma do homem.

Dessa sorte nós fazemos justiça ao anjo caído porquanto sabemos que Jeová, de certo não o fará. Com isso podemos ver Cain, num estado alterado de consciência, tomado por um transe profundo, ouvindo de Enki as narrativas que doravante encaminhariam o seu destino.

“Eu sou Samael, o primogênito entre as crias celestes do Senhor, a quem conheces como Deus. Mas da mesma forma que ele foi injusto contigo, preferindo teu irmão Abel a ti, comigo também ele obrou com injustiça, dando preferência ao meu irmão Miguel como seu favorito. E porque me levantei contra essa injustiça, ele me expulsou do céu e me colocou aqui na terra. Por isso eu fiz da terra o meu reino e ensinei a esse povo que habita esta terra todos os rudimentos da futura civilização que irá dominá-la pelos séculos adiante. De mim e dos meus descendentes, que tu conheces como os nefilins, sairão todas as ciências e as artes que farão dos homens os senhores da terra.”

“Tu”, Cain é meu primeiro filho na terra, e foi por causa disso que Deus te desprezou. Não foram as tuas oferendas que caíram mal ao nariz de Jeová, mas sim a tua descendência que ofendia o orgulho dele. Como sabes agora, ele é um soberano tirano e ciumento que tudo quer controlar e governar. Por isso ele fez os teus pais Adão e Eva inocentes do bem e do mal. Eles foram feitos como dois seres sem consciência e sem vontade própria. Eu, Samael, fui quem os acordou para a vida, dando-lhes consciência de si mesmos. Mas Jeová não os queria livres e conscientes, pois sabia que logo os seres humanos, assim despertos, começariam a contestar os seus decretos, que como tens visto em tuas andanças pela terra, são inexplicáveis e injustos.”

“ Mas Deus é Deus e tudo pode fazer sem precisar explicar porque o faz. E ele continuará usando os seres humanos para estimular a sua grande vaidade. Pois só para isso eles os fez: para ter um séquito de adoradores que o amem, temam e venerem, porque só assim ele se sentirá um verdadeiro Deus.”

“ Na verdade Cain, nenhum Deus existe sem uma consciência para atestar as suas existências. Pois um rei que reina sobre nada nada é também. Foi por isso que Jeová os fez. Porque ele estava só num mundo que não existia como realidade positiva. E foi para que alguém soubesse que ele existia de fato que ele fez o mundo e nele colocou o homem. O homem, Cain, é a única testemunha da existência de Deus. No dia em que o homem deixar de existir, Deus também deixará de existir. Não porque ele vá morrer, mas sim porque aqueles que sabem que ele existe morreram. Por isso o homem, ou algo semelhante a ele, terá que existir para sempre, nessa forma ou em outra, na terra ou em outro planeta.”

“Foi por isso que eu roubei o fogo dos deuses, que era o conhecimento do bem e do mal, e o dei aos homens. Por esse ato eu serei para sempre maldito e considerado o arauto do mal. Mas, considere, Cain, que honra teria, para o ser humano, viver toda a sua existência como um boneco sem consciência e sem vontade própria? Como um ser que foi feito somente para prestar reverência a um senhor, que por ele tem mostrado tão pouco respeito que sequer lhe concede a graça de uma consciência de si próprio? Sim, Cain, eu me compadeci do homem e não me conformei que ele passasse toda a sua existência como uma criança sem consciência, servil e obediente e por isso lhe dei o fruto do conhecimento, que é essa chama sagrada que chamas de sensibilidade. Eu os libertei da tirania de um senhor ciumento, cruel e vingativo, que premia sem critério e castiga sem justo julgamento. O homem, agora, tem a posse do conhecimento do bem e do mal e tudo que ele fizer será consequência das suas próprias escolhas. Os homens, doravante, viverão por conta do seu prazer e da sua dor. Tudo farão para obter o primeiro e evitar o segundo. Não haverá outro motivo para suas ações. Mas não pense que Jeová os perdoará e esquecerá tudo isso. Ele os porá à prova todos os dias da sua vida. Ele os fará sofrer e implorar por seu perdão e sua benevolência quando fizerem escolhas erradas e os fará prostar-se de joelhos para agradecer os bons resultados que delas advierem. As coisas boas ele os fará pensar que foi ele quem as deu; as más serão computadas à má influência que ele os fará crer que eu exerço sobre a alma do homem e por isso eles fazem escolhas erradas. Ele os fará crer que a dor é preferível ao prazer, que a pobreza vale mais do que a riqueza, que o homem foi feito para servir e não para ser servido. Com isso multidões servirão a poucos senhores e justificar-se-á a pobreza de muitos frente á riqueza de poucos. E será assim eternamente porque Jeová sempre procurará evitar que a humanidade se emancipe da sua tutela.”

“ Porque ele fez o homem para trabalhar para ele na terra. Ele os queria como escravos da vontade dele e não como companheiros para com eles dividir as glórias da criação. Por isso ele os pôs naquele jardim, inocentes do bem e do mal, como se fossem crianças às quais ainda não deu a consciência de si mesmas. E depois disso descansou, porque agora já tinha quem fizesse o trabalho por ele. Ele as queria assim, inocentes, servis e submissos, e os proibiu de comer do fruto do conhecimento pois sabia que no dia em que o fizessem, esse seria o dia da sua libertação.”

“Mas eu os libertei dando à sua mãe, Eva, o fruto do conhecimento. E esse fruto, como agora tu sabes, Cain, é um símbolo que significa a descoberta do instinto sexual. Esse instinto está na origem do conhecimento do homem como pessoa, porque é através dele que a posteridade do ser humano povoará a terra e terá consciência do seu poder e da sua própria medida. Porque o homem, Cain, doravante será a medida de todas as coisas, e todas só terão existência se a consciência do homem as reconhecer. Até mesmo a existência de Deus dependerá da consciência humana.” “Por isso, Cain, Deus proibiu os seus pais de comer do fruto do conhecimento e temeu que eles comessem também do fruto da árvore da vida e se tornassem imortais. Porque a morte, Cain, ainda é a único recurso que resta aos deuses para frear o poder do homem.”

(continua)