Isso vale uma vida
Apenas dez segundos, pensei. O que um homem pode fazer tendo tão pouco tempo de vida? Meus olhos estão vendados, mas é como se eu pudesse ver os soldados empunhando os fuzis que porão fim aos meus quarenta anos de existência. Não posso aceitar a morte, quero viver até o último segundo... No entanto, não me arrependo do que fiz. Lutei pelo direito de questionar, de ter uma opinião diferente daquela que nos foi imposta. Mas agora é tarde, o tempo em que o projétil leva do disparo até atingir meu corpo (oh, momento cruel!), valeria uma vida toda.
Tempo esgotado. Estou morto... Mas ainda penso. Ora, isso porque tudo não passava de uma espécie de encenação... Porém, nenhum dos atores tinha consciência disso.
Após "morrer", acordei em uma espécie de local de meditação, onde homens e mulheres, jovens e velhos pareciam dormir profundamente, todos sentados semelhantes a uma imagem de Buda. Eu também estava assim até abrir os olhos. Uma mulher entrou no recinto por uma das muitas portas que eu podia observar e se dirigiu até mim falando docemente:
— M..., o treinamento terminou.
Embasbacado, eu, a princípio, não sabia o que aquilo significava... No entanto, subitamente passei a me lembrar de tudo. Eu havia terminado uma simulação de existência que eu mesmo havia escolhido.
— Olá, Súria, quanto tempo! Parece que saí do inferno... — Agora eu me lembrava da mulher que estava na minha frente, era a mesma que estava quando eu ingressei na simulação.
— Sim, foi uma vida muito sofrida, mas você se saiu bem — disse Súria.
Não havia sido a minha primeira simulação, eu havia tido muitas existências, mas era a primeira vez que eu era fuzilado.
— Súria, quando adentrei nessa existência não esperava um mundo tão violento, o que aconteceu?
— M..., há muita coisa que você não sabe... O Demiurgo não é mais o mesmo... Pessoas tem desaparecido, dizem que ele as apagou. — falou Súria, agora angustiada.
— Como assim? Pessoas desaparecidas?
— Sim, pessoas que não estão mais na mente do Demiurgo... Talvez ele não se lembre mais...
— Talvez ele esteja velho demais e tendo falhas na memória, o que pode comprometer toda a nossa realidade. — eu disse.
Súria me olhou pensativa e falou:
— Vamos até o jardim?! Eu preparei um delicioso chá de tília.
Aceitei o convite de Súria. Deixamos o aposento de meditação, limiar de outras existências, mesmo que simuladas, e fomos até jardim.
O olor primaveril da vegetação inebriava os meus sentidos ainda abalados pelo fim trágico da minha última simulação.
— M..., prove esse maravilhoso chá... Isso vale uma vida.
Peguei a xícara de chá das mãos de Súria... A bebida estava deliciosa. Tive anseios de oscular repetidas vezes suas mãos pequenas e feminis, que produziram aquela maravilha.
Contudo, o chá pareceu agir sobre a minha consciência, e, aos poucos, fui percebendo que estava de novo frente ao pelotão de fuzilamento. Com a venda nos olhos, isso significava que eu tinha somente mais alguns instantes de vida... Então, veio-me a ideia de que essa vida era a única e a outra não passava de um sonho. Num ápice de desespero, gritei:
— Vocês estão loucos?! Vocês não podem me matar!! Essa vida é tudo o que tenho!...
Aparentemente os soldados se comoveram, pois se passaram minutos e eu ainda estava vivo. Então, como se passassem horas e eu ainda estivesse com os olhos vendados e amarrado no poste, adormeci.
Quando acordei, estava só em uma floresta. Pensei que os soldados, compadecidos com o meu clamor desesperado, haviam me libertado. Perto de mim havia um riacho de água cristalina. Imediatamente, pus-me a saciar minha sede. Talvez eu não conseguisse sair da floresta, mas eu me sentia muito mais esperançoso do que quando amarrado ao poste de fuzilamento.
Nesse momento, lembrei do local de meditação em que eu havia estado, lembrava-me de Súria me oferecendo o chá, mas havia esquecido de toda a história anterior que me ligava aquele lugar.
O Demiurgo, pensei... Estava esquecendo algumas pessoas, por isso elas haviam desaparecido. Não eram personagens boas o suficiente para continuar em sua história.
Nesse instante, ouvi uma voz a me admoestar:
— Não seja tolo! Vós humanos sempre se enganam quando tentam compreender o Todo pelo seu limitadíssimo ponto de vista!
— Quem é você? — por mais que eu tentasse, não conseguia entender de onde vinha essa voz.
— Sou um mensageiro do Demiurgo, que me enviou para tentar fazê-lo compreender um pouco mais do que vos aguarda.
A voz continuou, peremptória:
— Todo o mal que acontecer a vós ou àqueles que vós amais não deve impedir que acrediteis na finalidade benéfica e grandiosa do Demiurgo. Temos muitas existências e vós ainda não conseguis compreender como elas se encaixam em um todo harmônico e de bondade infinita.
A voz do mensageiro cessou e eu me vi correndo pela floresta em busca do caminho que me levaria para fora dela. Senti-me exausto e tive a impressão de que estava desmaiando.
Novamente abri o olhos e, mais uma vez, a venda me impedia de enxergar. Meu corpo estava amarrado em um poste e eu gritava, pronunciando palavras, involuntariamente:
— Isso é tudo que tenho!... Não me matem!!
Só mais dez segundos, pensei... Não aceitei as imposições do governo tirano. Hipócritas, acham que conseguirão vencer a verdade?! Lutei e fui destruído, mas a injustiça jamais prevalecerá.
Nesse momento, ouvi um disparo seguido por um violentíssimo e doloroso golpe no peito. Perdi a consciência... E como ainda posso contar essa história o leitor já deve fazer ideia.