A REBELIÃO

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Notou ser diferente no dia em que foi cortado do coral infantil.

“Queremos um padrão vocal distinto”, comunicaram a seus pais sem coragem de colidir olhares. A mãe se levantou bruscamente quase arrancando o garoto da cadeira: “Vamos, filho, parece que sua “voz” não é boa o bastante”. O pai, acostumado com esses reveses, agradeceu e saiu com o chapéu na mão. O menino tinha nove ou dez anos de idade. Não importa.

Em casa, parede-meia com meio mundo, outra reunião de família e a criança ouvia como se fosse chuva, os repetidos conselhos: “Eles não gostam da gente, acostume-se”, “você não é um igual”, “estude muito, trabalhe”, “lute contra si mesmo, não contra os outros”, “seu pai e eu não estaremos aqui a vida toda”.

Ao ficar sozinho, o garoto se beliscava tentando saber por que era menos que alguém. “Tenho braços e pernas, cabeça. Sei falar, escrever e corro também”, ele pensava. “Sou normal, sim”. Mas no outro dia, as coisas não se encaixavam. Nada de brincadeiras em grupo, sem beijo da professora ou conversas animadas. Poucos o rodeavam. Uma sombra. Alguém somente tolerado de forma educada.

Com o tempo, passou a culpar seus pais mestiços. Não eram Puros. Por conseqüência, a impureza estava no seu sangue. A mancha que lhe expunha e fazia-o indesejado. Herança de família. O pai trabalhava no ramo da construção civil. Tinha fama de competência e seriedade. Empresas diversas o procuravam; mesmo assim, o salário era pouco. Sempre era pouco para pessoas como ele. “A vida é assim, eu sou assim e assim será”, era seu cobertor roto de tanto uso. Socialmente, o pai era inferior à mãe, porque carregava a quinta geração impura consigo.

Sua mãe, produto de apenas segunda miscigenação, conservava algum traço da pureza. Era mais limpinha. Durante a juventude, usou dessa característica muitas vezes e quase foi aceita. Mas não conseguia sustentar a coisa muito tempo e quando reconhecida como “sangue sujo”, o encanto se desfazia como nuvens chorosas. Geralmente o desprezo pelos mestiços metidos a Puros era bem maior. Ela aceitou o fato e desistiu de si.

Quando se casaram, prometeram não ter filhos. Queriam evitar o sofrimento da criança. Possivelmente teria o sangue mais rarefeito ainda. Um convite para ataques. Não contribuiriam com a produção de gado. Porém, a vida não pergunta o que as pessoas querem. Ela joga nos seus braços o que bem entende. Dessa vez deixou um neném bonitinho como um bezerro, mas tão Impuro pelos padrões rotineiros que mesmo os médicos, acostumados com tantos nascimentos similares, hesitaram tocá-lo. A mãe, deitada na maca, ainda de pernas arreganhadas, sentiu o asco por trás das máscaras brancas. E chorou. .

Durante a época da inocência, enquanto crescia, o jovenzinho não percebia tanto. Ele sorria e brincava com pessoas que não o olhavam direito, desviavam do seu caminho ou simplesmente o ignoravam. Era uma criança sendo criança, imune à tristeza dos adultos. Porém, crianças crescem.

O episódio do coral foi o primeiro de que se lembrava melhor demonstrando existir algo errado. Outros aconteceram. Nunca foi espancado. A sociedade evoluíra bastante. Isso estaria bem abaixo da consciência magnânima de que muito se orgulhavam. O desprezo era mais sutil, quase uma carícia com urtiga. Desculpas bondosas, mas cortantes como pedra lascada: “O clube está cheio, volte depois”, “Não, infelizmente seu perfil não é o que procuramos para o cargo ”, “Olha, você é bem bacana, mas não posso ir ao cinema”. E assim os dias desabavam. Vítima e testemunha de outras vítimas. Ele cada vez mais ensimesmado.

A certa altura da vida, com os pais já falecidos, conseguiu emprego simples numa indústria siderúrgica, apesar da graduação com boas notas em engenharia eletrônica. “Não temos vagas para engenheiros”, ouviu muitas vezes. “Para mim não tem vaga”, respondia quando estava mais bravo que de costume. Os recrutadores não comentavam. Eram gentis demais.

Morava no gueto Paradayse. Um aglomerado urbano recheado de corredores estreitos, mal iluminados e perigosos. Afogado em meio a vizinhos tão Impuros como ele. Todos frustrados, ressentidos e omissos com os braços erguidos buscando uma esperança. Se houvesse sonhos coloridos que fugissem rumo aos céus nas noites quentes, somente os dele seriam vistos. Os demais não sonhavam. E se sonhassem, seria em preto e branco. “Seja um anônimo e não terá problemas”, aconselhava seu pai, curvado definitivamente.

Ele não queria ser assim. Precisava ter uma coluna e um nome. E dizia repetidamente que era alguém. Enlouquecia. Então um dia, aconteceu.

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“Lamentamos informar, mas seus serviços não são mais necessários. Por favor, compareça ao setor de desligamento em até 48 horas. Agradecemos seu trabalho e …” e continuava no mesmo tom a carta de demissão recebida logo de manhã, no domingo. Após ler, foi deitar-se novamente. “Lamentam nada. Menos um Impuro nessa porcaria de empresa”, disse para o teto.

Ainda com o papel nas mãos, dormiu até bem tarde. Há tempos não se sentia tão bem. A última vez foi por ocasião do atropelamento acidental do seu colega de classe. Usara uma bicicleta. Trazia no joelho a marca de dez pontos suturados e na alma a satisfação do semblante assustado do moleque Purinho com suas roupas brancas e cara de poney chorão, esparramado no asfalto, sujo do sangue que fugia de vários cortes. Uma ótima lembrança, sempre requisitada se a pressão fosse sufocante demais.

Ao acordar, banhou-se e saiu. Nada levava nas mãos. Não pretendia voltar.

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– Eles não podem ler nossas mentes – disse um deles – essa é nossa vantagem.

A reunião clandestina acontecia de forma intermitente há alguns anos. Havia uma dezena ou mais de Impuros que se arriscavam nesse encontro furtivo. Dessa vez, o local escolhido foi o píer Sete da praia Grega. Abandonado e muito distante para turistas, era adequado para os homens discutirem sem medo seus mais secretos anseios. Sentaram-se de modo que todos se vissem e ouvissem.

– Não lêem em nossas cabeças, mas sabem ler relatórios detalhados de nossas vidas. Eles sentem que alguma coisa está acontecendo e estão vigiando. Hoje mesmo vi dois agentes da Polícia Nacional disfarçados – retrucou alguém, preocupado com o espaço aberto onde se encontravam, apesar da noite alta.

– Como você sabe que eram polícias? – argüiu outro – seu medo te faz ver coisas.

Uma tensão evidente se criou. Todos ali estavam se arriscando muito. Reuniões noturnas sem prévio aviso às autoridades eram consideradas crime grave. Não havia covardes.

– Amigos, estamos todos juntos. Deixem que os inimigos nos agridam. Para que facilitar o trabalho deles? – falou o integrante mais recente – hoje mesmo fui despedido, então acho que o momento chegou – essa última informação alertou a todos – depende de vocês agora – concluiu.

– Foi demitido hoje? Disseram por quê? É muito estranho isso – falou em voz alta novamente aquele que viu ou pensou ter visto policiais.

– Todos sabemos o porquê: fui descartado porque não existimos para eles. Mas tudo está pronto. Eu estou pronto. O emprego perdido é só a gota que faltava – finalizou o jovem enquanto acendia um cigarro e tragava profundamente.

O líder da reunião e de todos, homem de certa idade, Impuro até os ossos, pôs-se de pé e disse:

– Os Puros com seus poderes sobrenaturais tem nos subjugado há tempo demais. Eles lêem mentes, controlam os elementos da Terra como bem entendem, se transportam no tempo e espaço a todo instante. Tantos poderes. Mas são preguiçosos e mesquinhos. Poderiam melhorar a vida de todos, mas preferem garantir somente suas regalias

– parou um momento para beber a água trazida no cantil e para que suas palavras encontrassem eco nos homens – eles são a ruína do planeta. Nós, que eles tanto desprezam, por não possuirmos nada antinatural, somos os verdadeiros donos desse mundo. Nós é que mantemos tudo ajustado.

O grupo estava eletrizado. Já haviam escutado esse discurso antes, mas dessa vez sentiram que um passo de chumbo estava prestes a ser dado.

O líder continuou:

– É possível que todos nós sejamos presos ou liquidados, mas isso é poeira, pois viver escravizado não é estar vivo. Já estávamos mortos antes mesmos de sermos concebidos, nossos pais eram cadáveres. Essa é a verdade. Nós apenas fingimos não saber.

Após outra pausa, dessa vez mais longa, ouviu-se a ordem:

– Vocês sabem o que fazer. Façam por vocês e os filhos que virão!

Sem perguntas desnecessárias, saíram sem se despedirem e rumaram para seus locais de ação previamente estudados. Avisariam seus contatos e estes a outros, sucessivamente. Ficaram somente o mais velho dos homens e aquele mais novo, recém desempregado. O sol nasceria em breve.

– Sem você, não teríamos um plano – disse o velho.

– Sim, eu sei – respondeu sem orgulho ou vaidade – mas se falhar, terá sido tudo por nada.

– Aí é que você se engana. Nunca houve resistência, hoje somos mais que muitos espalhados por todos os lugares. Assim que dermos o sinal, o seu sinal, a realidade será alterada para sempre.

– Então vou indo – falou o rapaz, tenso – não quero desapontar ninguém. E ao sair, escutou o velho ainda dizendo:

– Sei que não temos nomes, por motivo de segurança, mas diante do seu papel hoje, preciso saber para registro, caso não dê certo.

O jovem não se virou para o outro. Com uma mão no bolso e a outra segurando o cigarro disse apenas:

– Spartacus. Esse é meu nome.

Por algum tempo, o homem experiente na praia o observou se afastando. “Ódio, ele tem. Tomara que não seja só isso”, cochichou para o vento.

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– Filho – disse sua mãe – ouça com atenção.

O jovem então com dezenove anos estava sentado de frente a ela.

– Você não deve contar a ninguém, porque é perigoso para todos nós, nem seu pai sabe, você entendeu?

– Mãe, fala de uma vez – ele era todo curiosidade.

Em seguida, ficou sabendo que não era Impuro.

– Há muitos anos, consegui despertar um restinho de poder em meu sangue mestiço – ela falava orgulhosa – conectei-me à sua mente e encontrei seu dom. “ A natureza da evolução não segue uma linha reta, afinal”, ela disse citando a fala de alguém há muito esquecido.

– Seu poder se esconde, é invisível – esclareceu a mãe – talvez existam outros que não saibam.

– O meu poder, qual é? – perguntou sem pensar em ninguém mais.

Ela explicou e ensinou como controlá-lo. Depois disso, todos os dias se resumiam em planejar um modo de destruir aquilo que o destruiu. Vingança.

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A primeira explosão aconteceu exatamente às nove horas da manhã. Apesar do estrago material, não levantou suspeita. As equipes de socorro foram avisadas e controlaram o fogo.

A segunda bomba foi detonada cinquenta e cinco minutos depois e a quilômetros distantes da primeira ocorrência. Uma grande nuvem de fogo e fumaça tomou os céus. Novamente, os Puros não se preocuparam e mandaram Impuros dominar a situação.

Uma terceira, quarta e quinta detonações aconteceram. Cada uma se sobrepondo à outra em potência. O intervalo entre elas diminuiu para dez minutos. As demais foram explodindo cada vez mais próximas umas das outras. Não havia mais como não perceber que a coisa estava orquestrada.

O governo central deslocou seus mais importantes cidadãos para os diversos pontos de destruição em busca de explicações.

Os Impuros que haviam se organizado começaram a segunda fase do ataque. Saíram armados pelas ruas em cada canto. Invadiram casas, hospitais, escolas, edifícios, buscando todos os Puros que pudessem encontrar. E se aproveitando de sua surpresa, os matavam. Vingança.

Ao diagnosticarem o ataque em larga escala, o Alto Comando, inicialmente, se assustou com a violência. Uma rebelião, sem dúvida alguma. Depois, com pesar, concluíram que seria preciso uma medida equivalente: “Se não reagirmos, seremos exterminados, vejam os números, eles nos chacinam se tem oportunidade. Estão loucos”.

Então, o uso letal dos Poderes Puros foi aprovado.

Os Impuros não tiveram chance. Nunca tiveram. Foram dominados facilmente. O líder foi um dos primeiros eliminados. O mundo completara outro ciclo. E os donos do poder permaneceram no lugar. Um pouco mais atentos, talvez.

Foram julgados traidores do bem comum e punidos com a esterilização de todos impuros com mais de 10 anos de idade. Pagaram um preço nunca sonhado pela revolta. Demoraria muito tempo até surgir outra oportunidade.

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Assim que saiu da reunião no píer Sete, Spartacus se dirigiu para o túnel que levava à caldeira principal da fábrica onde trabalhava. Ela estava desativado há anos e não havia vigilância. Entrou sem problemas e aguardou a hora combinada.

Enquanto esperava, lembrou da dificuldade em convencer os demais de seu poder e intenção. Ele mesmo não sabia a extensão da sua força. Havia testado, claro, mas sempre em pequenas proporções. Mesmo assim com dores horríveis.

Quando descobriu o grupo de combate, percebeu estar no caminho certo. Ele não conseguiria eliminar todos somente com seu poder, precisava do auxílio de outras mãos.

Spartacus, voltando de suas lembranças, cônscio da gravidade do que iniciaria, afirmou diante do aço em que tocava, como oração a um deus mudo e real:

– Não sei se está certo, sei apenas que posso fazer. E quero fazer. Isso é muito mais do que preciso. Nunca mais serei anônimo no meio de tantos outros – silenciou.

Faltando cinco minutos para nove horas, Spartacus se concentrou e do seu corpo emanaram eflúvios azulados cada vez mais densos. Essas manifestações corriam por seus braços e impregnavam tudo em sua volta. Em determinado momento, fechou os olhos, sentiu a onda explosiva varrer seu corpo e ser expulsa. Foi a primeira bomba.

Após dez minutos, na clareira aberta pela explosão, partículas orgânicas pequeninas foram se erguendo do solo, escorrendo pelo próprio ar e se concentrando num único ponto. Aos poucos, esses elementos criaram uma forma semelhante ao ser humano em posição fetal, a qual foi se materializando sempre mais.

Mais um tanto passado e Spartacus se levantou inteiramente. Estava vivo. “Deu certo”, ele constatou entre dores gigantescas.

Ciente que a missão apenas se iniciara, tocou o solo e se integrou a ele viajando velozmente para o local escolhido da próxima detonação. Em lá chegando, saiu da terra como se emergindo de um lago, apontou para o prédio militar diante de si, não se importando com as pessoas presentes, concentrou-se e explodiu novamente.

Repetiu o feito dezenas de vezes até ser surpreendido e anulado pela equipe especial de Puros que antecipou o próximo alvo. Eles o envolveram numa bolha eletromagnética que restringia totalmente suas explosões.

Ao se perceber vencido, desistiu da batalha. Tentou falar, mas foi calado por forças alheias à sua vontade. Pressentiu o destino cruel que lhe seria imposto.

“Sua voz não é boa o bastante”, “lute contra si mesmo”, escutou a mãe dizer para um menino sem rosto.

Resoluto, pegou uma pedra calcinada, longa e fina como adaga. Cravou-a no peito de uma só vez com as duas mãos.

Enfim, seu sangue correu livre pelo corpo nu, lavando-o, fugindo para se esconder no solo. Ninguém perguntou seu nome. Não seria lembrado jamais. Spartacus, que nunca existiu, deixou de existir definitivamente.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 27/03/2021
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